Taxa local de polícia em atividades regidas pela União deve ser módica

O silêncio da Constituição e do CTN (Código Tributário Nacional) a respeito da quantificação das taxas relega a matéria a um nível intolerável de discricionariedade judicial, sobretudo no que toca às taxas de polícia. Para dar apenas dois exemplos, no espaço de um ano e meio o STF invalidou, por excessividade frente ao custo da atuação estatal, a taxa paraense de fiscalização de recursos hídricos (TFRH), com arrecadação anual de R$ 250 milhões (ADI 5.374, relator ministro Roberto Barroso, unânime, DJe 25.2.2021), mas validou as taxas amapaense, mineira e paraense de fiscalização de recursos minerais (TFRM), com arrecadação anual de R$ 150 milhões, R$ 300 milhões e R$ 500 milhões, respectivamente (ADI 4.787/AP, relator ministro Luiz Fux; ADI 4.785/MG, relator ministro Edson Fachin; ADI 4.786/PA, relator ministro Nunes Marques; todas no DJe de 14.10.2022 e em todas vencidos três ministros: Gilmar Mendes, Roberto Barroso e Marco Aurélio ou seu sucessor André Mendonça).

A questão é especialmente delicada quando, como nos casos acima, a atividade é disciplinada e fiscalizada de forma privativa pela União, na esteira do artigo 22 da Constituição. Isso porque “é condição constitucional para a cobrança de taxa pelo exercício de poder de polícia a competência do ente tributante para exercer a fiscalização da atividade específica do contribuinte (artigo 145, II da Constituição)” (STF, 2ª Turma, AgR no RE 602.089/MG, relator ministro Joaquim Barbosa, DJe 21.05.2012) — premissa de resto positivada no artigo 80 do CTN, segundo o qual, “para efeito de instituição e cobrança de taxas, consideram-se compreendidas no âmbito das atribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, aquelas que, segundo a Constituição Federal, as Constituições dos Estados, as Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios e a legislação com elas compatível, competem a cada uma dessas pessoas de direito público”.

Cumpre saber em cada hipótese, portanto, se para além do núcleo da atividade – sujeito ao controle privativo das autoridades federais — remanescem aspectos ancilares que possam ser fiscalizados pelos estados ou municípios. A controvérsia foi objeto do recente RE 776.594/SP, que versava o cotejo entre as competências federal e municipal (Tema nº 919 da repercussão geral, acórdão ainda não publicado). Embora a conclusão tenha sido pela invalidade da taxa municipal ali tratada — cujo fato gerador se limitava à fiscalização do funcionamento de antenas de celular, tarefa exclusiva da União —, o voto condutor do ministro Dias Toffoli aponta para a subsistência de um campo que poderia ter sido legitimamente explorado pelo poder local [1]. É conferir:

“Preconiza a Constituição Federal que cabe à União, privativamente, legislar sobre telecomunicações (artigo 22, IV) e, exclusivamente, explorar, de modo direto ou indireto, os serviços de telecomunicação nos termos da lei, a qual disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e explorar aspectos institucionais (artigo 21, XI).
(…)
A par dessas considerações, também é preciso se deixar fora de dúvidas que a União tem competência para fiscalizar os serviços de telecomunicação prestados pelo setor privado. Note-se, aliás, que, via de regra, quem autoriza, concede ou permite a exploração de um serviço público tem interesse de e pode fiscalizar esse serviço.
(…)
Avançando, julgo não haver dúvida de que os municípios têm competência para fiscalizar a observância, por parte de terceiros, de suas próprias legislações locais, incluindo aquelas sobre uso e ocupação do solo urbano e sobre posturas municipais relativas à segurança, à ordem, à tranquilidade pública e ao meio ambiente.
(…)
Consistindo essa fiscalização no poder de polícia ao qual se referem o artigo 77 do CTN e o artigo 145, II, da Constituição Federal, também pode ela ser eleita como fato gerador de taxa de fiscalização.
Exemplo disso é a instituição, já considerada constitucional pelo STF, das conhecidas taxas municipais de fiscalização, localização e funcionamento de estabelecimentos; de fiscalização de anúncios; de taxas de controle e fiscalização ambiental.
(…)
As competências de ambos os entes federados podem conviver harmonicamente.
(…)
Na mesma toada, também não podem os municípios, ao disciplinar taxa de fiscalização da observância de suas leis locais, enveredar, por exemplo, pela fiscalização do funcionamento de torres ou antenas de transmissão e recepção de dados e voz ou da execução dos serviços de telecomunicação, a qual é de competência da União e dá base para cobrança de TFF (Lei nº 5.070 /66).”

Em suma: se não podem fiscalizar o funcionamento de antenas de celular [2], podem os municípios fiscalizar a localização e o funcionamento do estabelecimento de empresas de telecomunicação, desde que tal controle não tenha por objeto a sua atividade-fim (reservada à Anatel), mas circunstâncias acessórias como a emissão de ruído ou de efluentes, o cumprimento de normas de segurança em áreas administrativas, o horário de trânsito de veículos pesados, etc.

A ratio decidendi, claro está, estende-se a outros segmentos sujeitos à regência exclusiva da União, como a energia elétrica, a radiodifusão e a mineração (CF, artigo 22, incisos IV e XII), bem como à atribuição fiscalizadora dos Estados. Isso o que adiantara o STF nos acórdãos relativos à TFRH e às TFRM, todavia fundados numa exegese do artigo 23, inciso XI, da Constituição [3] que nos parece excessivamente generosa [4] e na competência comum dos entes políticos para a proteção ambiental (CF, artigo 23, incisos VI e VII), a qual já enseja a instituição de taxas específicas por praticamente todos os Estados — bis in idem apontado de forma aguda, mas isolada, pelo ministro André Mendonça na ADI 4.786. Isso sem falar, no que toca às TFRM, que faltou à Suprema Corte extrair dessa premissa acertada (poder fiscalizatório apenas residual) a consequência inarredável da excessividade das exações.

Com efeito, a extensão da competência administrativa local nessas específicas situações servirá de parâmetro para a aferição do custo do respectivo exercício e, portanto, para a quantificação da taxa de polícia que o tenha por fato gerador. As taxas, como é sempre lembrado (embora nem sempre aplicado), regem-se pelo princípio da estrita retributividade — e não pelo da capacidade contributiva, que o artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição vincula aos impostos. Assim, o seu valor deve limitar-se, para cada contribuinte, ao custo dos atos estatais que lhe são destinados, e a sua receita deve limitar-se ao custo total de manutenção do órgão fiscalizador, o que exclui também a ideia de extrafiscalidade: aumento deliberado do tributo para desestimular atividades lícitas, mas indesejadas — conclusão que se reforça quando a competência para decidir sobre a (in) oportunidade da sua prática cabe a pessoa (a União) diversa da que institui o tributo (o Estado ou o Município).

É fato que a aferição desses valores e a obtenção de uma exata equivalência entre a taxa e o custo da atividade estatal, com a precisão de reais e centavos, revelam-se impraticáveis, admitindo-se que a sua quantificação se faça com recurso a mecanismos indiretos. É o caso da área do imóvel para taxas como a de coleta de lixo ou de fiscalização de estabelecimentos — com base na premissa razoável (quod plerumque accidit) de que imóveis maiores produzem mais resíduos ou comportam atividades cuja fiscalização é mais onerosa [5]. Ou do tipo de atividade nas taxas de fiscalização, desde que os fatores aplicáveis a cada uma delas visem a refletir o grau de intensidade da atuação estatal [6]. A praticabilidade, porém, não equivale a um cheque em branco ao legislador, que ficaria liberado para quantificar a taxa como bem entendesse. O afastamento do comando constitucional não pode ser tal que distancie a exação de uma realização tão próxima quanto possível da retributividade, e muito menos que a conduza a afrontá-la de forma aberta e deliberada. Nessa linha, entre outros: STF, Pleno, Rp. 1.077/RJ, relator ministro Moreira Alves, DJ 28.09.84; STF, Pleno, ADI 2.551 MC-QO/MG, relator ministro Celso de Mello, DJ 20.04.2006; e a já citada ADI 5.374/PA. Na precisa advertência de Humberto Ávila, “se a base de cálculo contiver um elemento cuja maior presença não revele a maior presença da atividade estatal, a taxa — para perseguir o uso da expressão constitucional — não será cobrada em razão da atuação estatal, mas em decorrência de outro fundamento” [7].

Em conclusão, sugerimos as seguintes medidas para o aprimoramento do controle das taxas:

  • alteração do artigo 145, parágrafo 2º, da Constituição[8], para que passe a prever que “as taxas devem corresponder ao custo da atuação estatal que constitui o seu fato gerador, admitida a adoção de critérios indiretos de mensuração e vedada a aplicação da capacidade contributiva e da extrafiscalidade”;
  • acréscimo de um parágrafo 3º ao artigo 145 da Constituição dispondo que “a receita da taxa é vinculada à manutenção da atuação estatal que constitui o seu fato gerador, devendo o tributo ser reduzido proporcionalmente no ano seguinte àquele em que se verificar excesso de arrecadação superior a 20%”;
  • inclusão no CTN de dispositivo prevendo — à maneira do que dispõe o artigo 82 para a contribuição de melhoria — que o projeto de lei relativo à taxa conterá:
    a) descrição detalhada do serviço público específico e divisível ou do ato de polícia que constitui o respectivo fato gerador;
    b) demonstração da competência para a atuação estatal em causa e justificação da sua necessidade;
    c) indicação do pessoal e dos meios necessários à atuação estatal em causa, com avaliação criteriosa dos respectivos custos;
    d) estimativa do universo de contribuintes e exposição analítica dos critérios de quantificação a serem-lhes aplicados;
    e) projeção da receita anual; e
    f) realização de audiências públicas no curso do processo legislativo, com garantia de participação das entidades representativas dos potenciais contribuintes.

Alguns desses parâmetros — meros pontos de partida para a urgente rediscussão do tema — podem desde logo ser (e por vezes o são) considerados pelo Judiciário na análise da validade das taxas diuturnamente sujeitas ao seu crivo. [1] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4476373, acesso em 18.01.2023. [2] “Em parecer acostado aos autos, o professor Eros Grau ressalta que essa lei municipal ‘não tem por objeto a fiscalização do uso e ocupação do solo urbano, porém a fiscalização do funcionamento de torres e antenas de transmissão e recepção de dados e voz’. De fato, o próprio artigo 1º é bem claro no sentido de que se trata de taxa de ‘Fiscalização de Licença para o Funcionamento das Torres e Antenas de Transmissão e Recepção de Dados e Voz’.

Vai na mesma direção o parecer do professor Floriano de Azevedo Marques Neto, para quem a lei local ‘estabelece um dever dos concessionários de obter uma licença de funcionamento e um dever de se submeter à fiscalização dessa licença de funcionamento’. Ainda de acordo com o professor ‘a fiscalização que pretende o Município de Estrela d’Oeste envolve unicamente as condições técnicas a respeito das antenas e torres de telecomunicações'”. (Voto do ministro Dias Toffoli) [3] “Artigo 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(…)

XI – registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios; (…)”. [4] Defendemos neste espaço em 2016 que “a competência dos entes locais limita-se a exigir o registro, para mero conhecimento, das concessões federais vigentes em seu território, informação útil para o planejamento em diversas frentes (infraestrutura, urbanização, localização de serviços de saúde, educação e transporte, etc.)”, acrescentando que “a inscrição nesse cadastro poderia até ensejar taxa, mas em valor compatível com o reduzido custo da atividade burocrática envolvida, e de toda forma jamais calculada segundo a quantidade de recursos naturais extraídos ou utilizados”. [5] STF, 2ª Turma, RE 213.552/MG, relator ministro Marco Aurélio, DJ 30.05.2000; STF, 1ª Turma, AgR no RE 658.884/SP, relator ministro Alexandre de Moraes, DJe 01.08.2018, entre tantos outros. [6] STF, 2ª Turma, AgR no RE 906.257/SP, relator ministro Gilmar Mendes, DJe 07.04.2016; STF, 1ª Turma, AgR no ARE 906.203/SP, relator ministro Roberto Barroso, DJe 06.09.2017.

Embora admitamos o critério, com a ressalva apontada no texto, este não é pacífico, comportando julgados em sentido contrário (STF, 2ª Turma, ARE 990.914/SP, relator ministro Dias Toffoli, DJe 18.09.2017) e estando atualmente afetado como Tema 1.035 da repercussão geral. [7] As taxas e a sua mensuração. In Revista Dialética de Direito Tributário nº 204 (09.2012), p. 39. [8] “Artigo 145, §2º. As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos”.

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