Solução de Consulta Cosit 13/2018 desrespeita o Supremo e a legislação

No RE 574.706/PR (Pleno, relatora ministra Cármen Lúcia, DJe 02.10.2017), o STF declarou que o ICMS não integra a base de cálculo do PIS e da Cofins.

Sem pretendermos discutir o acerto dessa conclusão, registramos que ela não depende da afirmação errônea de que o ICMS embutido no preço não pertence ao contribuinte, mas ao Estado – premissa que tem lastreado a tese igualmente frágil de que o não recolhimento do ICMS declarado constituiria crime de apropriação indébita tributária (Lei 8.137/90, art. 2º, II). De fato, ao menos dois outros fundamentos autônomos foram adotados pela Corte, a saber:

● a violação ao conceito de receita como “entrada que, sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, se integra ao patrimônio da empresa”[1]: a parcela do preço correspondente ao ICMS, apesar de pertencer ao contribuinte, não constitui – do ponto de vista constitucional – receita sua para fins tributários, pois gera uma imediata correspondência no seu passivo: o dever de quitar o imposto estadual; e

● a inconstitucionalidade da incidência de tributo sobre tributo, agravada – como aduziu o memorial da recorrente – pela quebra da isonomia advinda do fato de empresas exercendo a mesma atividade e auferindo idêntica receita líquida poderem sujeitar-se a diferentes ônus de PIS/Cofins caso sediadas em Estados diversos, com diferentes alíquotas de ICMS (participação no custeio da seguridade baseada, não na atividade econômica do contribuinte, mas em outra relação tributária).

Pois bem: visando a interpretar a decisão do STF, Receita Federal publicou a Solução de Consulta Interna 13 Cosit, segundo a qual “o montante a ser excluído da base de cálculo mensal da contribuição é o valor mensal do ICMS a recolher”, e não aquele destacado nas notas fiscais de aquisição[2](letra “a” da ementa). Esse critério tem causado grande insatisfação na comunidade jurídica, manifestada em artigos e declarações à imprensa especializada.

A Cosit exige ainda que a exclusão do ICMS se faça em separado para cada regime de apuração das contribuições (cumulativo e não cumulativo; letra “b” da ementa), o que é necessário mesmo na sistemática defendida pelos particulares – embora nesta o expurgo se faça nota a nota (por mirar o ICMS destacado em cada uma delas), dispensado o fracionamento do imposto (agora entendido como valor final a pagar, consideradas todas as entradas e saídas) entre os diferentes regimes de apuração do PIS e da Cofins na proporção das receitas submetidas a cada um deles (letra “c” da ementa). Nas letras “d” e “e” da ementa, a Consulta regula os meios de prova das informações pertinentes ao ICMS, o que vale tanto para a sistemática ali enunciada quanto para aquela predicada pelos contribuintes.

A controvérsia centra-se, pois, na alínea “a” da ementa da Solução de Consulta: exclusão de todo o ICMS destacado ou apenas daquele a recolher, já reduzido (ou até anulado) pela dedução dos créditos detidos pela empresa?

Antes de mais nada, é preciso dimensionar o impacto econômico dessa orientação, que varia segundo o regime de apuração do PIS e da Cofins (cumulativo ou não cumulativo) e, no âmbito deste último, depende ainda de uma importante premissa jurídica, ainda não definida pelo STF. Iniciemos pelo regime cumulativo, onde a diferença entre o critério da Receita e o dos contribuintes é clara, como se nota do seguinte exercício[3]:

Quadro 1: PIS e Cofins cumulativos – exclusão do ICMS destacado

Etapa 1 Etapa 2 Etapa 3
Preço 300 800 1000
Débito ICMS 54 (18%) 56 (7%) 180 (18%)
Crédito ICMS 0 54 56
ICMS a pagar 54 2 124
Preço livre de ICMS destacado 246 744 820
Débito PIS/Cofins

(3,65%)

8,97 27,15 29,93
.

Quadro 2: PIS e Cofins cumulativos – exclusão do ICMS a recolher

Etapa 1 Etapa 2 Etapa 3
Preço 300 800 1000
Débito ICMS 54 (18%) 56 (7%) 180 (18%)
Crédito ICMS 0 54 56
ICMS a pagar 54 2 124
Preço livre de ICMS a pagar 246 798 876
Débito de PIS/Cofins

(3,65%)

8,97 29,12 31,97
Da comparação vê-se que, excetuada a primeira etapa (onde não há créditos de ICMS e onde, portanto, o preço livre de ICMS destacado e o preço livre de ICMS a pagar são idênticos), o PIS/Cofins cumulativos são maiores no segundo cenário do que no primeiro, seja para cada contribuinte, seja quanto à carga total incidente na cadeia (70,06 contra 66,05).

A diferença a maior verificada no Quadro 2 advém da captura pelas contribuições, na etapa seguinte (efeito de recuperação), do ICMS excluído da respectiva base na etapa antecedente. Com efeito, a diferença de 1,97 verificada no PIS/Cofins gerado pela segunda operação nas duas sistemáticas (29,12 – 27,15) equivale exatamente a 3,65% de 54, isto é, à incidência das contribuições sobre o ICMS exonerado na primeira fase. A lógica se mantém constante: 2,04 – a diferença entre o PIS/Cofins gerado na terceira operação nas duas tabelas (31,97 – 29,93) – correspondem a 3,65% de 56, que é a soma do ICMS excluído nas fases anteriores[4].

Passemos agora para o regime não cumulativo, onde se apresenta uma grave questão preliminar: a exclusão do ICMS deve dar-se apenas quanto às saídas (débitos), ou também quanto às entradas (créditos)? Sigamos com o mesmo exemplo:

Quadro 3: PIS e Cofins não cumulativos – exclusão do ICMS destacado – efeito apenas nos débitos (créditos equivalendo a 9,25% do preço total, com ICMS)

Etapa 1 Etapa 2 Etapa 3
Preço 300 800 1000
Débito ICMS 54 (18%) 56 (7%) 180 (18%)
Crédito ICMS 0 54 56
ICMS a pagar 54 2 124
Preço livre de ICMS destacado 246 744 820
Débito PIS/Cofins

(9,25%)

22,75 68,82 75,85
Crédito PIS/Cofins 0 27,75 74
PIS/Cofins a pagar 22,75 40,83 1,85
Quadro 4: PIS e Cofins não cumulativos – exclusão do ICMS destacado – efeito nos débitos e nos créditos (créditos idênticos aos débitos da operação anterior)

Etapa 1 Etapa 2 Etapa 3
Preço 300 800 1000
Débito ICMS 54 (18%) 56 (7%) 180 (18%)
Crédito ICMS 0 54 56
ICMS a pagar 54 2 124
Preço livre de ICMS destacado 246 744 820
Débito PIS/Cofins

(9,25%)

22,75 68,82 75,85
Crédito PIS/Cofins 0 22,75 68,82
PIS/Cofins a pagar 22,75 46,07 7,03
Quadro 5: PIS e Cofins não cumulativos – exclusão do ICMS a recolher (o efeito limita-se aos débitos, pois o adquirente não tem acesso ao ICMS a recolher pelo seu fornecedor, o que exigiria o conhecimento do valor dos respectivos créditos)

Etapa 1 Etapa 2 Etapa 3
Preço 300 800 1000
Débito ICMS 54 (18%) 56 (7%) 180 (18%)
Crédito ICMS 0 54 56
ICMS a pagar 54 2 124
Preço livre de ICMS a pagar 246 798 876
Débito de PIS/Cofins

(9,25%)

22,75 73,81 81,03
Crédito de PIS/Cofins 0 27,75 74
PIS/Cofins a pagar 22,75 46,06 7,03
Como se verifica, o critério aplicado no Quadro 3 leva a uma receita total de 65,43, ao passo que os aplicados nos Quadros 4 e 5 (o último dos quais reflete na sistemática da Consulta Cosit) conduzem ambos à arrecadação total de R$ 75,85[5].

A coincidência tem uma razão singela: no Quadro 4 exclui-se todo o ICMS destacado, tanto dos débitos quanto dos créditos de PIS/Cofins (isolamento completo entre os tributos). No Quadro 5, exclui-se dos débitos de PIS/Cofins apenas o ICMS a pagar, de modo que as contribuições incidem sobre a diferença entre o destaque e o recolhimento. Mas tal diferença – o crédito de ICMS tomado pelo contribuinte – corresponde justamente ao ICMS incidente nas etapas anteriores, o qual – dada a impossibilidade prática referida no cabeçalho do Quadro 5 – é incluído na base de cálculo dos créditos de PIS/Cofins. É dizer: a parcela de ICMS integrada ao débito de PIS/Cofins em cada etapa é anulada pela inclusão do ICMS anterior no cômputo dos créditos que se lhe oporão.

Em conclusão, a Solução de Consulta 13:

● no regime cumulativo do PIS/Cofins, é prejudicial aos contribuintes;

● no regime não cumulativo do PIS/Cofins com exclusão do ICMS apenas nos débitos, é prejudicial aos contribuintes; e

● é indiferente no regime não cumulativo do PIS/Cofins com exclusão do ICMS nos créditos e nos débitos[6].

Entendido o contexto econômico, cumpre agora identificar, dentre os critérios de cálculo acima expostos, qual tem melhor base jurídica. Os votos proferidos no RE 574.706/PR são de pouca valia para essa pesquisa, pois o fato é que ora falam em ICMS destacado, ora em ICMS a pagar (embora nem todos os trechos vinculados pela Cosit a este último critério de fato o referendem). Tanto assim que a PGFN opôs embargos de declaração pedindo esclarecimento exatamente sobre esse ponto[7]. A publicação da Consulta antes do exame deste recurso menoscaba os esforços da PGFN e a própria autoridade do Supremo, atitude que não foi corrigida pela Nota de Esclarecimento publicada em 06.11.2018[8], que nada acrescente aos fundamentos anteriores.

O que nos leva, numa perspectiva doutrinária, a preferir a exclusão do ICMS destacado, e não a do ICMS a recolher, é o efeito de recuperação ensejado por esta última no regime cumulativo (incidência retrospectiva do PIS e da Cofins sobre o ICMS exonerado nas etapas anteriores), que nos parece incompatível com a ideia de não incidência das contribuições sobre o imposto estadual.

Definido esse ponto – aplicável a ambos os regimes e que esvazia a Solução 13 –, cabe indagar, no âmbito da não cumulatividade, se a exclusão do ICMS há de fazer-se nos débitos e nos créditos, ou somente nos primeiros.

A primeira solução parece autorizada pela Constituição – tal como interpretada pelo STF – e pela lógica. De fato, se o ICMS é estranho à receita do contribuinte, tampouco integra a do seu fornecedor. Supondo-se que também este procedeu à exclusão, calha a noção de que os créditos de um agente devem corresponder, pelo menos tendencialmente [9], aos débitos do seu antecessor.

A nosso ver, contudo, a sua implementação depende de alteração legislativa, já que o art. 3º, § 1º, das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 determina que os créditos sejam calculados – não sobre a base de cálculo das contribuições incidentes na etapa anterior, da qual se exclui o ICMS (previsão que seria mesmo impossível, pois a base de cálculo é a receita bruta mensal do fornecedor) – mas sobre “o valor” dos bens adquiridos para revenda ou utilizados como insumos, da energia elétrica consumida, etc. E o ICMS integra o valor ou preço das mercadorias vendidas, embora não constitua receita do vendedor para fins tributários, como demonstrado na abertura deste texto.

Em suma, somente uma alteração legislativa, com efeitos ex nunc, poderia instituir o critério que a Receita tenta impor por mera solução de consulta. A prudência, contudo, pode aconselhar o atendimento a essa orientação até o final deslinde da controvérsia.


[1] Aires Barreto. A Nova Cofins: Primeiros Apontamentos. In Revista Dialética de Direito Tributário vol. 103, abril/2004, p. 7-16. [2] Oportuno observar que a orientação fala em “valor do ICMS a recolher”, e não em “valor do ICMS efetivamente recolhido”, o que pode fazer diferença em certos casos. [3] A simulação considera uma operação interestadual intermediária (ICMS de 7%) apenas para dar maior verossimilhança ao exemplo. Os padrões extraídos dessa e das demais tabelas se mantiveram constantes em exercícios com os mais variados tipos de cadeias. [4] A dupla incidência – na segunda e na terceira fases – sobre os 54 excluídos na primeira etapa decorre do caráter cumulativo das contribuições. [5] A diferença de 1 centavo deve-se aos arredondamentos para a segunda casa decimal. [6] Não atingimos resultados diferentes em nenhum dos cenários testados. Eventual demonstração em contrário infirmará a conclusão aqui enunciada, que se funda no método indutivo. [7] https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2585258 – ver itens 38 a 42 da petição. [8] https://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2018/novembro/nota-de-esclarecimento [9] Diz-se tendencialmente porque há casos onde a diferença entre uns e outros é admitida pela legislação, como na apuração dos créditos (multiplicação do preço pela alíquota global de 9,25%) por aquisições junto a fornecedores sujeitos à cumulatividade (que pagaram a alíquota somada de 3.65%). No caso, consideramos que a lei presume a identidade entre as cargas tributárias de ambos os regimes.

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