Regaseificação e transporte do GNL revelam nosso caleidoscópio fiscal

O mercado de gás natural está em franca expansão no Brasil, dando ensejo a questionamentos sobre a tributação das múltiplas atividades em que se desdobra. Trata-se aqui de analisar que impostos incidem sobre a regaseificação e o processamento do gás natural liquefeito (GNL) e o posterior transporte dutoviário do produto no estado gasoso, serviços prestados por uma mesma empresa no âmbito dos chamados “contatos de movimentação”, firmados com consumidores livres ou comercializadores – agentes regulados pela Lei do Gás (Lei 14.134/2001, artigo 3º, incisos XIII e XV).

 A atividade predominante na movimentação de gás é o transporte, que será sujeito ao ICMS, se intermunicipal ou interestadual, ou ao ISS, se municipal (item 16.02 da lista anexa à Lei Complementar 116/2003). Sabe-se que, para fins regulatórios, “transporte de gás natural” é figura específica (Lei 14.134/2021, artigos 3º inciso XLII, e 7º), objeto de monopólio e concessão federais (CF, artigo 177, inciso IV), à qual não se subsumem as atividades das movimentadoras. Isso não prejudica, porém, a qualificação ora proposta, baseada na definição de transporte dada pelo Código Civil (artigos 730 a 733 e 743 e 756), que prevalece para fins fiscais (CTN, artigo 110).

É evidente, contudo, que a atuação da movimentadora não se limita ao transporte, pois, embora receba e entregue a mesma coisa, como exige o artigo 743 do Código Civil, procede à alteração de seu estado físico (de líquido para gasoso) e a submete a processamento (inclusive odorização), de maneira que os NCMs de entrada e saída são diferentes. Donde se conclui que essas atividades prévias exigem precificação e tratamento tributário em separado.

Pois bem: a regaseificação e o processamento têm por fim permitir o transporte dutoviário e o consumo do gás (Lei 14.134/2021, artigo 3º, incisos XLIII e XLV), constituindo, portanto, industrialização por encomenda, a teor dos artigos 146 do CTN e 4º, inciso III, do Regulamento do IPI. Trata-se, então, de aferir se essas atividades são sujeitas ao ISS ou ao ICMS – a não incidência do IPI decore no artigo 155, parágrafo 3º, da Constituição, segundo o qual “à exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo [ICMS] e os arts. 153, I e II, e 156-A [importação, exportação e o futuro IBS], nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica e serviços de telecomunicações e, à exceção destes e do previsto no art. 153, VIII [o futuro Imposto Seletivo], nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a derivados de petróleo, combustíveis e minerais do país”.  

Anote-se de saída a irrelevância para essa discussão da ADI 4.389-MC/DF (STF, Pleno, relator ministro Joaquim Barbosa, DJe 25.05.2011), onde ficou decidido que incide ICMS, e não ISS, “sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subsequente de industrialização ou de circulação de mercadoria”.
Isso porque, apesar do emprego da expressão, o caso não era de industrialização por encomenda, tal como o conceito é entendido no âmbito tributário (remessa de produto pelo encomendante ao industrial, para que o beneficie e devolva), mas de produção por encomenda de mercadorias a serem posteriormente adquiridas pelo encomendante (que nada remete, senão as especificações do que deseja).

No que toca à industrialização por encomenda propriamente dita, o STF acaba de decidir no Tema 816 (acórdão ainda não publicado) pela aplicabilidade do critério da destinação, concluindo que incidem ICMS e IPI quando o produto final se destina à comercialização ou à industrialização, e ISS quando se destina ao consumo pelo encomendante. A posição, embora com alguma discrepância, já era seguida pela maioria dos estados. É ver, por exemplo: Sefaz-SP – Soluções de Consulta 22.029/2020 e 26.155/2022; Sefaz-MG – Soluções de Consulta 30/2018 e 208/2018; Sefaz-MT – Informativo 34/2012; Sefaz-MA – Pareceres em Consultas Fiscais 13/2020 e 25/2021.

Vale notar que o simples fato de o encomendante utilizar o gás com o insumo em processo industrial não autoriza a conclusão de que este último seria destinado à industrialização, de modo a afastar o ISS, aqui fundado no item 14.05 da lista anexa à Lei Complementar 116/2003 (“beneficiamento”). Discussão semelhante deu-se quanto ao artigo 3º, inciso III, da Lei Complementar 87/96, que exonera do ICMS as “operações interestaduais relativas a energia elétrica e petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, quando destinados à industrialização ou à comercialização”.

Sustentavam os contribuintes que a venda interestadual de energia para utilização em planta industrial seria intributável, porque “destinada à industrialização”. O STF deu pela incidência, com a particularidade única de que todo o imposto é carreado ao Estado de destino, por força do artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea “b”, da Constituição (Pleno, RE 748.543/RS, relator para o acórdão ministro Alexandre de Moraes, DJe 10/9/2020).

A Sefaz-SP tem pronunciamento específico sobre a regaseificação contratada por comercializador que destinaria o produto final à revenda, concluindo de forma acertada pela incidência do ICMS e – o que não vem ao caso aqui – admitindo a elegibilidade da operação a regime especial do imposto.

Em suma, têm-se as seguintes combinações possíveis na movimentação de gás natural:
– ISS na regaseificação e no processamento (se o gás for destinado ao consumo do encomendante) + ISS no transporte dutoviário (se municipal);

– ISS na regaseificação e no processamento (se o gás for destinado ao consumo do encomendante) + ICMS no transporte dutoviário (se intermunicipal ou interestadual);

– ICMS na regaseificação e no beneficiamento (se o gás for destinado a revenda ou industrialização pelo encomendante, como tal não entendido o uso como insumo em processo industrial) + ISS no transporte dutoviário (se municipal); e

– ICMS na regaseificação e no processamento (se o gás for destinado a revenda ou industrialização pelo encomendante, como tal não entendido o uso como insumo em processo industrial) + ICMS no transporte dutoviário (se intermunicipal ou interestadual).

O quadro é mais uma prova, se esta fosse necessária, da complexidade do nosso atual sistema de tributação do consumo, fonte inesgotável de conflitos (ou, antes, cúmulos) de competência impositiva. Nesse particular, embora passível de críticas e aperfeiçoamento em inúmeros outros, a reforma tributária será benfazeja, por simplificar a vida dos contribuintes e dos próprios Fiscos e por desonerar em boa medida as instâncias administrativas e judiciais de julgamento.

PUBLICAÇÕES RELACIONADAS

Categories
Arquivo

Recentes

plugins premium WordPress