Quem nunca sofreu cobrança não pode ser processado por sonegação fiscal

“Devemos agir de modo a que em qualquer altura já tenhamos vivido o bastante, coisa fora do alcance de quem está sempre procurando um rumo para a sua vida. E não penses que são poucos os homens nessas circunstâncias: são praticamente todos! Há mesmo quem comece a viver na hora quem que devia morrer. Parece-te estranho? Pois vou dizer-te uma coisa aparentemente ainda mais estranha: há homens que deixaram de viver antes mesmo de terem começado!” (Sêneca. Cartas a Lucílio. Livro 3, Carta 23)

Uma coisa pode acabar antes mesmo de se iniciar? O paradoxo calha bem na lição do estoico, expressa em linguagem figurada e voltada ao campo da moralidade. Mas não tem lugar no mundo denotativo, pretensamente lógico e cronologicamente linear do Direito.

Ou não deveria, pois é a isso que temos assistido, incrédulos, nos domínios do Direito Penal Tributário. Referimo-nos às denúncias de sonegação fiscal dirigidas contra gestores de empresas não incluídos como coobrigados no lançamento do tributo supostamente evadido.

Como se sabe, a Súmula Vinculante 24 do STF afirma que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”, isto é, da sua confirmação pelas instâncias administrativas de julgamento. Mais de uma vez alertamos para a insuficiência do enunciado, que não impede a injustiça de alguém ser condenado criminalmente e depois ver extinto, na esfera judicial, o débito que lastreara a acusação (clique aqui e aqui para ler).

Hoje vamos explorar o seu alcance subjetivo, buscando garantir a correta aplicação daquele pouco que o Supremo já consagrou. De fato, uma das funções do lançamento enumeradas pelo artigo 142 do Código Tributário Nacional é identificar o(s) sujeito(s) passivo(s) da obrigação. É dizer: não basta dizer que há tributo devido, sendo imperativo apontar devido por quem.

Quem não é devedor, por não constar do lançamento, não pode sofrer os efeitos da respectiva confirmação, a qual se terá dado contra terceiros (o contribuinte e eventuais responsáveis), sem o atingir de nenhuma maneira. Noutras palavras, para deixar mais claro o absurdo da situação: não pode ser tachado de sonegador aquele de quem jamais se exigiu pagamento algum!

Se não se pode oferecer a denúncia antes do encerramento do processo administrativo, muito menos se pode ofertá-la antes do seu início, que ocorreria com a lavratura do auto de infração contra a pessoa física do acusado – ou melhor, com a sua inclusão, como coobrigado, na autuação lavrada contra a empresa de que era gestor ao tempo do fato imponível.

Isso lhe garantiria a oportunidade de defesa administrativa, que o STF qualifica como direito fundamental do contribuinte (Pleno, RE 389.383/SP, Relator Ministro Marco Aurélio, DJe 29.06.2007). Finda essa fase, com confirmação do débito e da vulneração ao artigo 135 do CTN (prática de ilícito justificadora da responsabilização pessoal), aí sim seria admissível a denúncia contra aquele.

Foi o que ressaltaram os Ministros Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim ao votarem no Habeas Corpus 81.611/DF, relatado pelo primeiro (Pleno, DJ 13.05.2005), acórdão que serviu de base à elaboração da Súmula.

“Princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem” – anotou o Relator – “que se subtraiam do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia de questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório (…) para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal”.

“Um cidadão vai ser compelido a pagar por estar sob pressão do Ministério Público?”, indagou o Ministro Nelson Jobim. E respondeu de pronto que, a ser assim, estar-se-ia “suprimindo um direito constitucional de defesa na esfera administrativa”.

Isso sem falar que, como lucidamente acrescentou o Ministro Cezar Peluso, “seria inexplicável e intolerável (…) autorizar o Fisco a exigir, pela força coercitiva da ignomínia” – pois o pagamento extintivo da punibilidade é a única forma de livrar do processo criminal o gestor a quem não foi dado defender-se da imputação fiscal – “ tributo que não pode exigir por via de ação civil”.

É certo que a jurisprudência atual do STJ – criticada com rigor inexcedível por Leonardo José Corrêa Guarda em dissertação de mestrado que tive a satisfação de avaliar[1] – admite o redirecionamento de execução fiscal, inclusive contra terceiros não mencionados da certidão de dívida ativa, desde que a Fazenda Pública comprove a ofensa ao artigo 135 do CTN (1ª Seção, REsp. 1.182.462/AM, Relatora para o acórdão Ministra Eliana Calmon, DJe 14.12.2010).

Sobre esse esdrúxulo mecanismo muito há a dizer, quem sabe em futura coluna. Por ora anotamos apenas que se trata de lançamento feito pelo juiz, com quebra da separação dos Poderes, e temporalmente desvinculado do fato gerador (ao contrário do que predica a regra geral do artigo 173, inciso I, do CTN), limitado que está ao período de cinco anos do evento processual consistente na citação do devedor principal.

Seja como for, parece-nos claro que a aplicação literal da Súmula Vinculante 24 impede a persecução criminal desse administrador tardiamente responsabilizado, visto que para ele não houve e nem haverá o processo administrativo a cujo desfecho o verbete condiciona a admissibilidade da denúncia.

A se pretender sustentar a posição contrária, será necessário, das duas uma: ou alterar a redação da Súmula, ou interpretá-la de forma a entender contido na menção a “lançamento definitivo”, quando se tratar de lançamento judicial (redirecionamento da execução fiscal), a decisão do incidente de desconsideração da personalidade jurídica dos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil.

Pois é evidente que não se pode, por maior que seja a dignidade de um juiz de primeiro grau, permitir que uma decisão monocrática de sua lavra, não raro parcamente fundamentada e tomada inaudita altera parte, baste para justificar a agressão ao patrimônio particular de quem, até aquele momento, era inteiramente alheio à intricada discussão do débito tributário.

https://www.conjur.com.br/2012-out-03/consultor-tributario-paradoxos-direito-penal-tributario-brasileiro

https://www.conjur.com.br/2016-abr-13/consultor-tributario-materia-penal-primeiro-direito-reu-bem-acusado

 

[1] Aspectos Processuais da Responsabilidade Tributária de Terceiros. PUC/SP, 2014.

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