Para julgar, é preciso ter coragem, mas também liberdade

Autor: Laércio Cruz Uliana Junior*

No dia 1º de abril, inúmeros veículos da imprensa deram conhecimento de um vídeo que começou a circular no dia anterior e que rapidamente alcançou milhares de visualizações. Nele, assistiu-se o Presidente de uma turma julgadora do mais alto Tribunal administrativo tributário do país afirmar que representaria seus colegas para que perdessem o cargo caso votassem de uma determinada maneira, contrária a seu entendimento. O conteúdo, apesar da data, era verdadeiro, ainda que pouco crível.

O vídeo, disponível no canal do YouTube do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), alcançou logo a marca de milhares de visualizações e causou enorme comoção na comunidade jurídica, que reagiu com veemência contra a ameaça, como constatou este Blog em matéria dos jornalistas Rayssa Motta e Fausto Macedo.

O Colégio de Presidentes das Comissões de Direito Tributário da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB externou que os julgadores do CARF não poderiam ser em nenhuma hipótese coagidos e considerou que houve, no caso, intimidação, tendo os votos dos conselheiros ameaçados sido “(…) estritamente técnicos e refletiam sua convicção ao apresentarem distinguishing do caso concreto ao enunciado de súmula daquele tribunal”, não se tratando de caso de desobediência. O órgão colegiado de deliberação conjunta das Comissões de Direito Tributário das Seccionais Estaduais da OAB fez questão de registrar, ainda, solidariedade aos conselheiros constrangidos, endereçando-lhes uma moção de congratulação.

Em seguida, todas as principais entidades, associações e institutos de direito tributário do país se manifestaram por meio de seus representantes, proeminentes juristas: Heleno Torres (ABDF), Valter Lobato (ABRADT), Marcelo Magalhães Peixoto (APET), Roberto de Carvalho Santos (IEPREV), Marcelo Prado e Edison Aurélio Corazza (IPT), Diego Bomfim (ITB), Renato Silveira (IASP), Igor Mauler Santiago (IDPT), Eduardo Perez Salusse, Humberto Gouveia e Sidney Eduardo Stahl (MDA), Halley Henares Neto, Maurício Barros, Mariana Vilela e Eduardo Gonzaga de Oliveira Natal (ABAT), Gustavo Brigagão e Daniella Zagari (CESA), afora inúmeras manifestações de solidariedade registradas nas mídias sociais por acadêmicos, advogados e personalidades do mundo jurídico.

A comissão especial de direito tributário da OAB, ato contínuo, emitiu parecer técnico ao Conselho Federal do órgão para representar contra o presidente de turma nas comissões de ética do CARF e da Receita Federal do Brasil, com o alerta de que, caso cumprida a ameaça em quaisquer dos colegiados, representaria ao Ministério Público Federal pelo cometimento de diversos tipos penais. Caminho semelhante tomou o Movimento de Defesa da Advocacia (MDA) ao efetivar, nos dias que se sucederam, as representações contra o agente público perante o CARF e o Ministério Público Federal.

Todas as manifestações da comunidade jurídica e dos veículos de comunicação, ao assistirem, perplexos, aos acontecimentos registrados em vídeo, envolvem, antes, o próprio caráter de paridade material que dá sentido ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: não há, ou não deveria haver, diferença entre conselheiros em razão de sua origem, se provenientes da Receita Federal do Brasil ou da sociedade civil. A igualdade de condições envolve também a liberdade para decidir. É necessário que haja coragem para julgar, mas coragem sem liberdade é angústia e decepção, sentimentos que me acompanharam nos dias que se passaram depois que assisti ao vídeo.

Abstraia-se por um momento o mérito da discussão técnica (a aplicabilidade da prescrição intercorrente para casos de multas aduaneiras). Em um determinado trecho do vídeo, um dos conselheiros pede serenidade, afirma que precisa de amparo, de apoio institucional para expressar as suas discordâncias, que o que está em disputa não pode jamais transbordar para a vida pessoal dos julgadores.

Que seja dito com clareza: não é incomum, seja no CARF ou no Poder Judiciário, afastar-se a aplicabilidade de uma súmula, justamente porque sua confecção é pautada por casos concretos e, ainda assim, não se tem notícia de uma única punição a um conselheiro que tenha praticado a técnica da distinção. Fazê-lo, diga-se, não é um trabalho fácil: exige, como se disse, garantias mínimas de independência. Ao afirmar que uma norma não se aplica, tampouco incide o julgador em desobediência, mas, muito pelo contrário, em respeito ao estrito cumprimento do seu dever funcional.

Afastar a aplicabilidade de súmulas, de leis, de decretos, de portarias e de outras normas complementares é o quotidiano, é o corpo e a alma do exercício jurisdicional. Fosse desnecessária a interpretação, fossem as normas tributárias mecanismos de simples e autômata aplicação, desnecessário seria o Estado-Juiz, desnecessário seria o CARF.

O recurso ao expediente regimental daquilo que um jurista de escol como Lenio Streck tão bem chamou de crime de hermenêutica foi um capítulo isolado que merece reflexão e censura, sob pena de se tornar uma prática recorrente entre os colegiados do CARF. As discordâncias devem constar dos autos e jamais transbordarem, na forma de punição, sobre as vidas dos julgadores, e não se admite nem se admitirá a institucionalização e normalização do ambiente de ameaça e de intimidação que hoje ronda os conselheiros. Como afirmou o Ministro Gilmar Mendes ao tratar do tema, a situação é preocupante, devendo, de um lado, o dispositivo que trata da perda de mandato ser revisto e, de outro, os aplicadores terem conhecimento da teoria dos precedentes.

De fato, o ato de decidir envolve tolerância, respeito e independência e o exercício regular da judicatura, judicial ou administrativa, implica imparcialidade. Todo este edifício jurídico resta comprometido diante da ameaça de que a formação de convicção, seja ela qual for, será castigada com a punição da perda do cargo em virtude justamente do seu regular exercício. Os meios para que os precedentes prevaleçam existem: recursos, incidentes, reclamações. Resta, portanto, a reflexão: o caminho para se discutir a correção de uma decisão fundamentada, concordemos ou não com ela, deve ser a punição do julgador? Não será a discordância justamente o motor que move e dá sentido ao Direito?

Mais do que afirmações técnicas sobre a aplicação dos precedentes e súmulas por parte dos órgãos praticantes da judicatura, mais do que a afirmação de que o chamado “distinguishing” fundamentado é um ato de decisão de competência do aplicador da norma e não de um terceiro, mais do que a própria paridade que deve informar o CARF, como órgão máximo da estrutura do contencioso administrativo federal para o julgamento de questões tributárias, o que fica do debate é a noção de que, para o julgador, o pressuposto da coragem é a liberdade. E, para isso, é necessário que se construa um arcabouço institucional que não admita jamais a punição da expressão do livre convencimento fundamentado, pois este, aprendi nos bancos de Faculdade, é a base e também o objeto do Estado Democrático de Direito.

*Laércio Cruz Uliana Junior é presidente da Associação dos Conselheiros dos Contribuintes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Aconcarf). Conselheiro titular da 1.ª Turma da 2.ª Câmara do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Coordenador-adjunto da pós-graduação em Direito e Processo Tributário da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST)

Fonte: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/para-julgar-e-preciso-ter-coragem-mas-tambem-liberdade/

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