Obra traz comentários sintéticos e práticos ao Código Tributário Nacional

Lançado há pouco pela Editora Enlaw, o livro “Código Tributário Nacional Interpretado”, organizado por Costa Machado e coordenado pela professora Mary Elbe Queiroz, tem como proposta discutir de forma breve e essencialmente pragmática cada artigo desse diploma fundamental do nosso ramo.

Muitos juristas de relevo participam da obra, para a qual contribuí com comentários sobre os artigos 121 a 123 do código, que compartilho abaixo com os leitores que semanalmente nos prestigiam neste espaço.

“Artigo 121 — Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.
Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:
I — contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;
II — responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei”.

O comando introduz capítulo relevantíssimo e largamente desatualizado do Código Tributário Nacional (CTN). Trata, em linha com vetusta doutrina, o sujeito passivo como gênero, do qual são espécies o contribuinte e o responsável.

Define contribuinte como a pessoa que é chamada a pagar o tributo por ter relação pessoal e direta com o respectivo fato gerador – e não por o realizar. E nisso anda bem, pois há tributos cujo fato gerador é um estado, e não uma ação (Imposto Predial e Territorial Urbano, ou IPTU), e outros cujo fato gerador é um ato estatal (taxas) ou o efeito econômico de um ato estatal (contribuição de melhoria), hipóteses em que não seria apropriado falar-se em realização do fato gerador pelo contribuinte.

Define como responsável a pessoa que, não tendo relação pessoal e direta com o fato gerador, mas sendo de algum modo vinculada a ele (de forma a poder ressarcir-se do ônus econômico que se lhe impõe), é chamada a pagar o tributo por força de lei expressa. Embora não caiba aprofundar o tema, que será objeto de comentários específicos quanto a cada um dos artigos subsequentes, é oportuno registrar que a responsabilidade tributária divide-se em:

1) Por substituição, que ocorre quando o débito — conquanto decorrente de fato gerador diretamente ligado a uma pessoa (aquela que, não fosse a substituição, seria o contribuinte) — já nasce contra o responsável. A substituição tributária diz-se para trás quando impõe ao substituto o dever de pagar tributo por fato gerador já ocorrido (diferimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, ou ICMS, retenção de fonte do IR), e para a frente quando se trata de fato gerador ainda a ocorrer, hipótese em que se faz necessária a presunção da base de cálculo (ICMS/ST). A substituição tributária não é regulada pelo CTN senão na previsão genérica do artigo 128;

2) Por transferência, que ocorre quando o débito nasce contra uma pessoa e, em razão da ocorrência de um fato previsto em lei, migra para outra, com manutenção ou exclusão da primeira. A responsabilidade tributária por transferência é objeto de ampla disciplina pelo CTN, o que não obsta a existência de diversos pontos cegos — grupo econômico, dissolução irregular, autoridade competente para redirecionar (Fisco ou Judiciário), prazo para redirecionamento etc. —, que aconselham a urgente atualização do diploma. Subdivide-se em:

— Dos sucessores (artigos 129-133), que normalmente acarreta a exclusão do devedor originário (contribuinte ou outro responsável) — morte da pessoa natural, extinção da pessoa jurídica etc. —, embora essa regra comporte exceções, como ocorre nos casos de cisão parcial (em que o débito por fatos anteriores pode ser exigido de qualquer das empresas [1]) e de alienação de fundo de comércio ou estabelecimento comercial (artigo 133); e

— De terceiros (artigos 134, 135 e 137), que decorre da prática de um ato ou omissão ilícita por parte de pessoa originalmente obrigada apenas a colaborar para o pagamento do tributo por quem de direito. Não se vê na prática aplicação do artigo 134, e parece mesmo impensável que a mera impossibilidade de exigência contra o contribuinte acarrete a responsabilidade das pessoas que supervisionam os seus negócios, mesmo que não lhes seja imputável violação à lei ou aos estatutos (pois este é o diferencial do artigo 135, cujo inciso I incorpora todo o artigo 134). Uma tal responsabilidade objetiva do terceiro é vedada pelo STF (RE 562.276/PR). Do concurso dos artigos 135 e 137 resulta que a responsabilidade das pessoas referidas no primeiro é solidária com o contribuinte, quando agem em benefício deste, e exclusiva quando agem em benefício próprio ou de outrem, à revelia e em prejuízo do contribuinte. A prova de tais circunstâncias costuma ser tormentosa.

A solidariedade (artigo 124) não constitui modalidade autônoma de responsabilidade tributária, mas forma de relacionamento entre os diversos contribuintes vinculados a um mesmo fato gerador (inciso I) ou entre contribuinte(s) e responsável(eis) (inciso II). Em tempos mais recentes, o inciso I, algumas vezes associado ao artigo 50 do Código Civil, tem sido invocado para embasar a atribuição de responsabilidade tributária a outras pessoas jurídicas (grupo econômico de fato), tema sobre o qual o CTN nada diz. A construção, malgrado os questionamentos que suscita [2], firmou-se na jurisprudência, impondo-se a precisão — nem sempre observada na prática — de que se cuida de hipótese de desconsideração da personalidade jurídica (responsabilização de terceira empresa pelos tributos decorrentes dos fatos praticados pela empresa contribuinte na vigência da confusão patrimonial entre ambas), e não de sucessão tributária — atribuição a uma empresa dos efeitos tributários de fatos praticados pela outra antes do(s) evento(s) que marca(m) o início da confusão patrimonial.

“Artigo 122 — Sujeito passivo da obrigação acessória é a pessoa obrigada às prestações que constituam o seu objeto”.

A regra é singelíssima: sujeito passivo da obrigação acessória é a pessoa a quem a imponha a legislação tributária. De fato, a acessoriedade desses deveres instrumentais face à obrigação principal é funcional, e não ontológica. É dizer: as obrigações dizem-se acessórias na medida em que vêm “no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos” (artigo 113, parágrafo 2º), e não — como o termo poderia sugerir — porque só subsistem onde haja tributo devido. Pelo contrário, as obrigações acessórias são mantidas durante a suspensão da exigibilidade do crédito tributário (artigo 151, parágrafo único), e não é raro que o seu cumprimento constitua a condição mesma para o afastamento da obrigação principal, caso do artigo 14 do CTN, respaldado no artigo 150, inciso VI, alínea “c”, da Constituição.

Não se aplica aos deveres tributários instrumentais, portanto — ou, pelo menos, não se aplica em toda a sua extensão —, o brocardo de que o acessório segue o principal.

Da mesma forma — e aqui voltamos ao teor do dispositivo — não existe necessária coincidência entre os destinatários da obrigação principal e das obrigações acessórias a ela relacionadas. Estas últimas podem ser impostas ao contribuinte, ao responsável (preenchimento da Dirf pela fonte retentora do Imposto de Renda; escrituração e declaração do ICMS/ST pelo substituto), a terceiros que — por as cumprirem — se livram do risco de responsabilização (o pai que declara o imposto de renda do filho; o administrador que registra os tributos devidos pela empresa — Súmula 430 do STJ), e assim por diante.

Em suma, a todos de quem a Administração — atendendo a padrões de razoabilidade quanto a uma vinculação mínima com o fato gerador, à utilidade das informações exigidas e à onerosidade de sua obtenção — entenda por bem exigi-las.

“Artigo 123 — Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”.

O tributo é obrigação ex lege. Todos os aspectos da hipótese de incidência (material, espacial, temporal e pessoal) e do consequente — pessoal (sujeitos ativo e passivo) e quantitativo — decorrem exclusivamente da lei, não sendo modificáveis pela vontade do particular.

Autonomia e eficácia da vontade há, sim, quanto: 1) à realização dos fatos relevantes para a incidência do tributo (ter ou não veículo automotor; exercer ou não atividade sujeita a fiscalização remunerada por taxa; aceitar ou recusar herança ou legado etc.); 2) à graduação de sua expressão econômica (ter veículo mais ou menos custoso; praticar mais ou menos atos passíveis de fiscalização; aceitar no todo ou em parte herança ou legado etc.); e, chegando ao que nos interessa, 3) à prática dos atos desencadeadores da responsabilidade tributária: exigir ou não prova de quitação dos tributos incidentes sobre os bens adquiridos; aceitar ou não herança ou legado (responsabilidade pelas dívidas tributárias do de cujus); adquirir ou não fundo de comércio ou estabelecimento comercial; praticar ou não, como diretor, atos ilícitos etc.

Seja como for, ocorrido o fato gerador do tributo ou da responsabilidade tributária, não cabe ao particular alterar os respectivos efeitos jurídicos com base no seu simples querer. Esse o teor do artigo 123, que determina a inoponibilidade à Fazenda Pública dos ajustes privados sobre sujeição passiva e relega ao Direito Privado (escrow accounts, arbitragens, ações de regresso etc.) a eficácia das cláusulas — usuais desde os contratos de locação residencial até as mais sofisticadas operações de M&A — que atribuem a uma das partes a obrigação de satisfazer os tributos incidentes sobre determinado bem ou correspondentes a certo período.

O dispositivo, embora incensurável em seu conteúdo e escorreito em sua redação, não está isento de más leituras, havendo decisões isoladas que, com pretenso fundamento nele, se recusam a valorar — para aferir a legitimidade dos sujeitos passivos indicados no lançamento — as cláusulas contratuais que determinam as obrigações de cada parte na configuração mesma do negócio autuado. Exemplo disso são decisões que mantêm a responsabilidade do vendedor pela diferença de alíquotas de ICMS quanto a mercadorias objeto de saída interestadual sob a cláusula FOB e depois revendidas no próprio Estado pelo adquirente. A discussão versa sobre responsabilidade tributária, e a defesa do vendedor é a de que, dada a forma de contratação, a sua atuação se encerra na entrega da mercadoria em seu próprio estabelecimento, não sendo possível imputar-lhe a tredestinação. O artigo 123 não veda a análise da cláusula FOB e de seus efeitos tributários, pois esta não pretende regular a distribuição de responsabilidade tributária já nascida a partir dos fatos ocorridos. Pelo contrário, a referida cláusula influi na configuração dos próprios fatos, e é a partir deles que se deve concluir sobre a sujeição passiva.

Em síntese, é sobre os fatos praticados pelo particular que incide a lei tributária. A vontade é irrelevante para a incidência do Direito, mas é relevante para a prática dos fatos, não podendo ser negligenciada pelo aplicador no momento de descrevê-los.

Os coordenadores dessa relevante obra coletiva têm organizado debates virtuais abertos ao público sobre os vários temas nela discutidos. O próximo ocorrerá nesta quinta-feira (19/8), às 11 horas (clique aqui para acompanhar).
Fica o convite! [1] A solução não consta do CTN – mais uma de suas omissões –, decorrendo do artigo 5º, parágrafo 1º, do Decreto-lei 1.598/77, aplicável ao imposto de renda e estendido por analogia aos demais tributos, sem embargo da vedação a essa técnica para a imposição de tributo ou de responsabilidade (CTN, artigos 108, parágrafo 1º, e 144, parágrafo 1º). [2] Cf. José Gomes de Lima Neto. Responsabilidade Tributária dos Grupos Econômicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2021, 8h00

Publicações relacionadas