O STF e o caso do Difal de ICMS em 2022

Quando a condolência com os interesses arrecadatórios prejudica a eficácia da Constituição

Um dos temas mais relevantes do Judiciário em matéria tributária para 2022 será, certamente, a exigência do Difal de ICMS, eis que a empreitada para cobrança deste exercício esbarra no princípio da anterioridade, princípio basilar do direito tributário no Brasil.
E o Supremo Tribunal Federal (STF) tem parcela significativa de culpa neste cenário, não direta, mas indiretamente, principalmente por conta das modulações de efeitos de suas decisões contrárias aos interesses do poder público.

A modulação de efeitos, como se sabe, está prevista no art. 27 da Lei 9.868/99 e se trata de expediente processual que permite, para a salvaguarda da segurança jurídica ou do interesse social, ao STF restringir os efeitos de sua decisão “a partir do trânsito em julgado ou de outro momento a ser fixado” pela Corte. O Código de Processo Civil de 2015, por sua vez, prevê em seu art. 927, § 3º, que diante de uma alteração de jurisprudência dominante nos tribunais superiores, o STF poderá modular os efeitos da decisão, atendendo os requisitos de interesse social e de segurança jurídica.

Em linha com a chamada teoria da anulabilidade, a concepção contemporânea constitucional considera os princípios como elementos de integração do sistema jurídico, em que as suas bases normativas e principiológicas passaram a ser meios de indicação dos parâmetros e adequações da aplicação do direito. Conforme a perspectiva de direito como integridade, de Ronald Dworkin, todos os princípios constitucionais são “standards”, padrões adotados
pelo sistema normativo e que devem ser seguidos sem exceções. Isso significa, por exemplo, que o princípio da legalidade não pode ser excepcionado a fim de concretizar o princípio da solidariedade, pois o sentido mínimo das previsões constitucionais deve ser assegurado em todos os casos.
Dworkin se opõe ao uso da discricionariedade dos juízos no julgamento dos casos complexos: na solução dos hard cases, os juízes devem utilizar padrões determinados a fim de encontrar algo que vincule o juiz a uma resposta correta, afastando o julgador do apelo à discricionariedade. Neste particular, exsurgem a proporcionalidade e a razoabilidade como instrumentos e técnicas interpretativas para, levando em consideração todas as peculiaridades jurídicas e consequencialistas da decisão, seja possível acomodar concomitantemente as regras e os princípios jurídicos aplicáveis às relações tributárias questionadas judicialmente. Esses princípios são os principais
embasamentos para se adotar a modulação de efeitos.

É a exceção, resultado da “equilibrada ponderação desses primados com o princípio da legalidade, todavia, imporá um olhar restritivo sobre o instituto, que deverá ser visto como medida excepcional”, conforme avalia Carlos Mario Velloso Filho.

No entanto, o grau de aplicação do expediente da modulação de efeitos é preocupante. Invocando os números, em 2019, entre ações de controle concentrado e repercussões gerais, foram apreciados 26 casos de natureza tributária, ocorrendo a modulação de efeitos em apenas dois deles (7,6%). No ano seguinte, 2020, dos 77 processos de natureza tributária, a modulação se deu em quatro (5,19%). Em 2021, o número é estrondoso, dos 45 casos relevantes
de matéria tributária, 16 foram modulados. O percentual é de 35,6%!

E o fenômeno da modulação de efeitos pelo STF não é grave apenas em função de representar quase a metade dos processos apreciados, subvertendo a regra de exceção. A própria equação empregada pelo Supremo para modular os efeitos de suas decisões é consternadora: é o que denuncia outro texto de opinião, ao avaliar que a Corte não possui critério claro para calibrar a eficácia de seus julgados, o que também compromete a segurança jurídica.

Mais um ingrediente interessante é que a modulação de efeitos tem sido usada para proteger os interesses da Fazenda Pública. Como assinala Igor Mauler, “a modulação tornou-se moeda corrente nos julgamentos tributários do STF, quase sempre favorecendo o Poder Público, mesmo quando indevida, e nunca protegendo o particular, mesmo quando cabível”[1].

Esse cenário faz com que o cometimento de inconstitucionalidades pelos entes federados valha a pena. E é o que pode estar subsidiando uma empreitada recente para cobrança do Difal de ICMS em 2022.

Para explicar com detalhes a afirmação, até 2015, todo o ICMS incidente sobre operação de envio de mercadorias de um estado para outro era recolhido ao estado onde a empresa vendedora estava sediada. Movido pelo equilíbrio da competitividade que vendas online proporcionaram aos estados destinatários de mercadorias, o Congresso Nacional definiu que o “diferencial de alíquota” (Difal) do ICMS passou a ser partilhado entre o estado de origem e o estado de destino (Emenda Constitucional 87/15).

Essa solução teve início em 2015 e passou a alcançar operações realizadas a pessoas não contribuintes do ICMS, o que contemplava compradores online, via de regra. Isso tudo por meio de um convênio do Confaz (Convênio 93/15), órgão do Poder Executivo que congrega os secretários de Fazenda estaduais, e de legislações estaduais.

Contribuintes foram ao Judiciário porque entenderam que os estados não poderiam cobrar o Difal de ICMS antes da edição de uma lei complementar. O caso alçou o STF, que julgou o tema em fevereiro de 2021, em repercussão geral, para definir a inconstitucionalidade da exação. Segundo o Supremo, a Constituição Federal “não autoriza a cobrança, pelos estados ou pelo Distrito Federal, do ICMS correspondente ao diferencial de alíquotas quanto às operações e prestações interestaduais com consumidor final não contribuinte do imposto antes do advento da lei complementar”. Isso por se tratar de um novo imposto.

O STF foi além da declaração de inconstitucionalidade do convênio e, portanto, do Difal de ICMS, para modular os efeitos de sua decisão, permitindo que o imposto continuasse a ser cobrado em 2021. Somente a partir de 2022 é que o Difal de ICMS seria indevido.

De acordo com o ministro Dias Toffoli, a modulação de efeitos se fez necessária porque os estados e o Distrito Federal estavam cobrando o ICMS e seria importante “recordar que a EC nº 87/15 e o convênio impugnado, o qual a regulamentou, vieram com o objetivo de melhor distribuir entre os estados e o Distrito Federal parcela da renda advinda do ICMS nas operações e prestações interestaduais”. Isso justificou a modulação, pois a nova
equação distributiva seria a mais “justa” e, também, porque já foi implementada. Para ele, a falta de modulação dos efeitos da decisão faria com que os estados e o Distrito Federal experimentassem situação inquestionavelmente pior do que aquela na qual se encontravam antes da emenda constitucional.

A toda evidência, o recado do Supremo aos estados foi claro: que buscassem a aprovação de uma lei complementar em 2021 para suportar juridicamente a cobrança em 2022.

Foi então que o Projeto de Lei Complementar 32/21 foi aprovado no Congresso Nacional, em 20 de dezembro, em definitivo, após deliberação nas duas casas. A Presidência da República, no prazo regimental, sancionou a lei apenas em 4 de janeiro de 2022 (LC 190/22).

Como se sabe, novo tributo somente pode entrar em vigor no ano seguinte ao da sanção da lei e desde que transcorridos 90 dias entre a publicação da lei instituidora do imposto e a produção de seus efeitos. No caso da LC 190/22, apesar de veicular normas gerais do ICMS, o seu art. 3º. previu expressamente o prazo de vigência das regras nele estabelecidas como sendo exatamente aquele próprio de uma lei instituidora de tributo.

Não merecem acolhida as justificativas de alguns estados para permitir a cobrança em 2022, quais sejam, a existência de leis aprovadas em 2021, as quais apenas ficariam com a vigência suspensa até a edição da LC 190/22 ou a ausência de instituição de novo tributo.

Isso porque a lei complementar é a base de validade para as legislações estaduais, conforme o STF determinou, sendo que estas somente têm aptidão para produzirem efeitos observados os princípios da anterioridade e da noventena, como, também, o próprio prazo de vigência estabelecido na LC 190/22. Assim, por mais que alguns estados tenham editado suas leis em 2021 para embasar a exigência da instituição do Difal de ICMS, fato é que o termo inicial para a cobrança do imposto necessariamente deve observar o dispositivo de vigência da LC 190/22.

A outra razão é que, sim, se está diante de um novo tributo, conforme o ministro Dias Toffoli expressamente consignou em seu voto a partir, inclusive da narrativa apresentada pelo secretário de Fazenda do Distrito Federal. Assim, as legislações estaduais devem observância ao termo de vigência consagrado na Constituição Federal (anterioridades), o conjugando ao estabelecido na LC 190/22.

Por tudo isso, a lei complementar não tem o condão de gerar quaisquer efeitos em 2022.

Apesar da clareza solar dessa reflexão, alguns estados já sinalizam que irão exigir o tributo em 2022, optando por enfrentar o tema no Judiciário a deixar de arrecadar os esperados R$ 9,8 bilhões.

Ora, a ausência de sanção aos entes federados — resultado da modulação de efeitos recorrente — tem dois desdobramentos claros, mas nem sempre dimensionados pelo STF quando aplica a modulação de efeitos: estímulo à edição de legislações inconstitucionais, porque vale a pena descumprir as diretrizes constitucionais; e fomento de um contencioso em massa, disseminado em todo o país.

Klaus Tipke reconhece que o jogo político muitas vezes impõe o aumento de tributos para que um grupo agraciado por um determinado gestor público seja contemplado com esses recursos: “eles alimentaram muitos cidadãos beneficiários ou gratuitamente, que podem decidir uma eleição, à custa dos contribuintes” (“Moral tributária do Estado e dos contribuintes”, p. 45). Este arbítrio justifica os limites à imposição fiscal.

E é neste contexto que Tipke sinaliza que a missão do Tribunal Constitucional não deve ser apenas protocolar, ou seja, de julgar o caso apenas tecnicamente, sem a preocupação com
a consequência da decisão na perspectiva moral. O Tribunal não pode proceder de modo tal a dar o sinal ao poder público de que os entes federados apenas preenchem “página em branco” para subsidiar a cobrança de tributos. É necessário que o Tribunal se arrogue na função de “guardião da moral impositiva, o vigilante dessa moral” (p. 89).

O STF já foi acionado para se manifestar e se espera que a condolência com os interesses arrecadatórios deixe de ser considerada para que a decisão da Corte cumpra o seu altivo e desejado papel de guardiã dos princípios e regras constitucionais. [1] SANTIAGO,
Igor Mauler. Difal para consumidor final não contribuinte só valerá em 1º abril. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-22/consultor-tributario-difal-consumidor-final-nao-contribuinte-valera-abril.
Acesso em: 05 jan. 2022.

ARIANE COSTA GUIMARÃES – Sócia do escritório Mattos
Filho Advogados. Coordenadora Acadêmica de Tributário do Instituto IEJA. Cofundadora do Elas Pedem Vista. Mestre e Doutora em Direito e Políticas Públicas. Professora de Direito Tributário no UniCEUB. Foi Visiting Researcher em Georgetown. Vice-presidente
da Comissão de Reforma Tributária da OAB. Vice-presidente do comitê de legislação da Câmara Americana de Comércio (AMCHAM). Vice-presidente da ABAT-DF

Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/stf-difal-icms-2022-20012022

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