O DIREITO FUNDAMENTAL DE ECONOMIZAR IMPOSTOS

É logicamente insolúvel, no campo da política fiscal, a disputa entre os que privilegiam a segurança e os que preferem a isonomia, aqueles repelindo qualquer tributação extralegal, e estes justificando-a sempre que formas jurídicas diversas revistam substâncias econômicas assemelhadas.

Idealmente, porém (e sabemos que o mundo ideal não existe), esta interminável disputa ideológica não deveria espraiar-se para o Direito, pois a lei cristaliza a posição prevalecente em um dado momento, tendo autonomia frente às paixões dos que defendiam ou combatiam a sua aprovação.

E, embora a lei seja apenas o ponto de partida para a produção da norma, o processo que leva daquela a esta não é voluntarista, antes sujeitando-se a cânones hermenêuticos bem definidos. Ou, como adverte o Min. MARCO AURÉLIO, com apoio em BANDEIRA DE MELLO: “no exercício gratificante da arte de interpretar, descabe ‘inserir na regra de direito o próprio juízo – por mais sensato que seja – sobre a finalidade que conviria fosse por ela perseguida’ “[1].

Exemplo desta postura superior, e por isso mesmo rara, deu o Min. PERTENCE, ao referendar a tributação dos servidores públicos inativos (EC nº 41/2003): “expresso com este voto minha tranquila convicção jurídica, embora deva confessar que poucas vezes, nesta Casa, chegar a um convencimento haja contrariado tão frontalmente a minha vontade de concluir diversamente”[2].

E o que diz o nosso Direito positivo sobre a matéria em exame?

De saída, e para ficarmos apenas no capítulo tributário, tem-se que a Constituição veda a exigência de tributos não previstos na lei (art. 150, I), define rigidamente o fato gerador dos impostos e de diversas contribuições (arts. 153, 155, 156 e 195) e erige a isonomia em limitação ao poder de tributar (título da Seção em que figura o art. 150, II), e não em fundamento autônomo daquele, invocável pelo Estado para a correção dos efeitos alegadamente indesejados da lei que ele mesmo editou.

Descendo para o CTN, deparamo-nos com a vedação expressa à tributação por analogia (art. 108, § 1º), temperada pela autorização ao legislador – mas não ao intérprete, sujeito à proibição há pouco referida – para, nos limites de sua competência (art. 110), ampliar o campo de incidência de um tributo por meio da equiparação, para fins fiscais, de diferentes institutos privados (art. 109).

Antes de prosseguirmos, rápidas definições se fazem necessárias.

Designa-se evasão fiscal a conduta do contribuinte que, por meios ilícitos, tenta eximir-se total ou parcialmente da satisfação de obrigação tributária já nascida ou ainda por nascer.

Elisão fiscal, de outro lado, é a supressão ou redução de tributo pelo impedimento da incidência da respectiva norma instituidora ou pela atração de regra benéfica, a partir da liberdade de conformação dos negócios jurídicos reconhecida pela lei privada (CC, art. 104).

Num e noutro caso, portanto, a intenção do contribuinte é a mesma (pagar menos ou não pagar nada), o que demonstra a total irrelevância deste elemento na diferenciação das categorias.

A elisão, a nosso ver, é espécie do gênero planejamento tributário, que abrange também as situações em que a vantagem perseguida, embora de índole tributária, não consiste na mitigação de um dever fiscal.

Imagine-se a compra, por pessoa jurídica, de um CDB prestes a vencer-se. O adquirente paga ao aplicador original o valor atual do título, com os juros remuneratórios já incorridos, retendo o IRRF correspondente[3] e quitando-o por compensação com créditos acumulados de IRPJ que detenha[4]. No vencimento da aplicação, recebe do banco o valor bruto desta até o momento da aquisição (pois o IRRF já foi pago), sofrendo retenção apenas quanto aos juros incidentes de então até o resgate.

Em suma, o negócio – do qual não decorrerá qualquer redução de IRPJ – proporcionará ao adquirente, que atrai para si responsabilidade tributária que doutro modo não teria, a troca por dinheiro de créditos tributários de realização difícil ou mesmo impossível (empresa inoperante).

Voltando à elisão fiscal, é inevitável concluir que, se o fato gerador da norma tributária não se verificou (ou se a hipótese da norma benéfica deveras ocorreu), a imposição do dever fiscal (ou a exclusão do benefício) só poderia fazer-se – sendo certo que estamos no campo da licitude – por analogia (ou por restrição do campo de aplicação da lei), uma e outra fundadas em norma geral antielisiva que tornasse inoponíveis ao Fisco as estruturas jurídicas adotadas com o fim exclusivo de economizar tributos.

Ocorre que tal norma não existe entre nós, e seria inconstitucional se existisse. Ao contrário, o CTN veda a tributação por analogia e, no sempre invocado art. 116, parágrafo único, só permite ao administrador desconsiderar os atos ou negócios “praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo”. Atos simulados, portanto, o que demonstra tratar-se de regra antievasiva, e não antielisiva, como testemunham ALBERTO XAVIER[5], SACHA CALMON[6] e tantos outros.

Para suprir a inexistência de uma tal franquia para a administração, os defensores da interpretação econômica têm apelado para as mais diversas figuras, resgatadas do exterior ou de outros ramos do ordenamento: fraude à lei, abuso de direito, ato anormal de gestão, business purpose test

Consiste a fraude à lei, prevista no art. 166, IV, do Código Civil, na prática de atos aparentemente lícitos com o fim de driblar proibição ou imposição veiculadas em lei imperativa (divórcio para burlar a vedação de doação entre cônjuges, seguido de novo casamento). Ora, a norma tributária não é imperativa, mas condicional: o pagamento é obrigatório, uma vez ocorrido o fato gerador, mas a prática deste é facultativa, em especial quanto aos impostos.

Bem por isso, já em 1958, HOMERO PRATES advertia contra os “intérpretes apressados, inclusive juízes e tribunais”, que “continu[a]m a confundir lamentavelmente os atos propriamente simulados, em prejuízo de terceiros ou em fraude da lei e regulamentos, de caráter fiscal, do Direito Tributário, com os atos in fraudem legis – que constituem violações agravadas de normas obrigatórias ou proibitivas, de ordem pública”[7].

O abuso de direito, disciplinado no art. 187 do Código Civil, ocorre quando o destinatário atende à letra da lei, mas “excede manifestamente os limites impostos pela seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (recusa arbitrária de autorização para o casamento, para não sairmos do Direito de Família).

E qual seria o direito objeto de abuso? Para os corifeus desta tese, o direito de livre organização dos negócios do particular, pois a adoção de formas inusuais atenderia ao único objetivo de economizar tributo. Ora, a nosso ver, a busca de redução fiscal lícita – todas estas teorias assentam em tal premissa, sem a qual o caso seria de evasão, admitindo solução singela – antes realiza do que contraria o direito de livre disposição dos próprios bens, que se volta à maximização dos ganhos, certo como é que não existe um dever legal de opção pelas vias mais onerosas.

Não que o Estado deva adotar atitude passiva diante da quebra de igualdade e as perdas arrecadatórias que o planejamento tributário sem dúvida acarreta. Pode reagir, mas pelo meio juridicamente apropriado: normas antielisivas específicas para cada situação identificada, com efeitos ex nunc, cuja edição é autorizada pelo já referido art. 109 do CTN.

Quanto aos institutos estrangeiros – e mesmo à norma geral antielisiva, onde adotada –, a jurisprudência dos diversos países revela que acabam por atingir quase exclusivamente casos que, no Brasil, seriam classificados como de simulação.

O mesmo vale para os exemplos invocados pelos arautos da fraude à lei e do abuso de direito (constituição de oito empresas com idênticos sócios, atividade e endereço para gozar do lucro presumido, v.g.).

Parece-nos que um estudo aprofundado da simulação – e sobretudo da simulação absoluta – dispensaria boa parte da complicação desnecessária que se produziu na doutrina tributária brasileira nos últimos anos.

Deveras, o simples fato de a declaração de vontade ter atendido às formalidades legais não afasta a pecha de simulação, quanto a ela não subjaza nenhuma vontade real. Foi a redução da simulação à falsidade – cujo equívoco é denunciado por JOSÉ BELEZA DOS SANTOS[8] – que levou alguns a buscarem fora os instrumentos que o Direito Tributário já ofertava para reprimir situações que a todos pareciam inaceitáveis.

Mas vontade real tampouco se reduz a propósito negocial extratributário, pois a economia fiscal é oponível ao Fisco mesmo quando não seja um efeito acidental e quase indesejado das decisões empresariais do contribuinte, como anota, não sem ironia, a decisão noticiada semana passada neste espaço por ROBERTO DUQUE ESTRADA (Três boas notícias chegam dos Tribunais de Brasília)[9].

[1] STF, Pleno, RE nº 166.772/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ 16.12.94.

[2] STF, Pleno, ADI nº 3.128/DF, Rel. para o acórdão Min. CEZAR PELUSO, DJ 18.02.2005.

[3] IN/RFB nº 1.022/2010, arts. 37, §§ 1º e 2º, e 39, I, e § 1º, I e IV.

[4] IN/RFB nº 900/2008, art. 26, § 9º.

[5] Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001.

[6] Evasão e Elisão Fiscal. O parágrafo único do art. 116 do CTN e o Direito Comparado. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

[7] Atos Simulados e Atos em Fraude da Lei. São Paulo e Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1958, p. 322.

[8]“A simulação é um vício de formação dos atos jurídicos, a falsidade é um defeito da prova documental; a primeira supõe uma divergência intencional entre a vontade real e a declaração, a segunda uma falta de conformidade entre as declarações feitas quando o instrumento se lavrou e as que no documento se exararam…” (A Simulação em Direito Civil. São Paulo: Lejus, 1999, p. 74)

[9] CARF, 1ª Seção, Processo nº 10680.724392/2010-28, Rel. para o acórdão Conselheiro CARLOS EDUARDO DE ALMEIDA GUERREIRO, j. em 11.12.2012.

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