O caos fiscal por trás da greve dos fiscais

Revolta de servidores da Receita Federal ante reajuste eleitoreiro das polícias é compreensível

A
União declara autofalência por emenda constitucional, dispensando-se de honrar os seus precatórios. Especialistas como Felipe Saito demonstraram que a medida era desnecessária, decorrendo de um misto de inapetência gerencial e avidez política.

Mas o mal está feito: servidores tungados em seu salário, empresas forçadas a pagar tributos indevidos, proprietários desapossados de suas terras a preço vil e tantos outros, vitoriosos
após décadas em juízo, foram convocados neste Natal para a roda do amigo da onça. O trote se estende aos que vencerem os seus processos até 2026, e as prendas são: esperar indefinidamente, receber 60% à vista ou vender o título no mercado, com o deságio que
este arbitrar (o que explica a sua reação camarada à PEC), para compensação com tributos atrasados ou uso como moeda podre em privatizações e negócios afins.

Nessa penúria, era de se esperar que os sacrifícios fossem socializados. Mas, apenas aprovado o calote, bondades seletivas começaram a surgir: derrubada do veto fake, com aumento
do fundo eleitoral para a casa dos R$ 5 bilhões; destinação de R$ 16 bilhões para as emendas de relator, que talvez deixem de ser secretas (há controvérsias), mas sem dúvida continuarão antidemocráticas, porque votadas de forma superficial (retirando ao Congresso
o pleno controle de cada despesa) e porque distribuídas aos parlamentares e pagas pelo Executivo na proporção única da adesão daqueles a este; reserva de R$ 1,7 bilhão para aumento salarial das polícias federais (PF, PRF e Depen); tudo isso apenas em 2022.
O caráter eleitoreiro desse reajuste incomodou outras categorias, tendo gerado uma reação furiosa na Receita Federal, com a entrega de mais de 700 cargos
de chefia – um número que faz pensar –, a renúncia de julgadores fazendários do Carf, tribunal administrativo que decide litígios tributários, e greve. A revolta é compreensível, sobretudo quando se considera haver acordo salarial com a corporação cujo cumprimento
é adiado desde 2016. 

Mas o instrumento dessa melhoria remuneratória não pode ser o bônus variável de eficiência e produtividade, hoje – enquanto a pretendida regulamentação não vem – congelado em R$ 3.000
para os auditores e R$ 1.800 para os analistas. Previsto na Lei 14.464/2017,
o bônus constitui uma quarta destinação do Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (Fundaf); as três outras são o custeio da fiscalização tributária, da estrutura do Carf e de projetos de interesse ou a cargo da Receita.

O problema é que entre as receitas do fundo está a totalidade das multas e dos juros de mora tributários arrecadados, o que enseja evidente conflito de interesses: adotada a escala
proporcional, quanto mais numerosas e elevadas forem as autuações, mais ganharão aqueles que as aplicarem e mantiverem, pois os auditores em exercício no Carf também são destinatários da verba. Ainda que os critérios de rateio para esses últimos sejam diversos,
o fato é que um bom colchão de multas e juros ajuda a garantir bônus expressivos para toda a classe – uma mensagem bem difícil de abstrair.

É fato que a lei diluiu a receita das multas entre todas as despesas do Fundaf, quebrando a vinculação exclusiva ao bônus proposta pela MP 765/2016, que primeiro o instituiu. Mas
a afetação remanescente, ainda que parcial, basta para comprometer a impessoalidade dos agentes tributários. O fato de o produto da alienação de bens apreendidos pelo fisco também compor o fundo piora o cenário.

Ao julgar em 1977 lei paulista que gratificava os fiscais estaduais com base na arrecadação, o Supremo Tribunal Federal (STF) invocou o Anti-Moiety Act (lei antimetade), que em 1867
proibiu essa prática nos EUA, por constituir “estímulo à cobiça dos funcionários públicos”, “instrumento de corrupção política” e “processo de terrorismo fiscal contra cidadãos honestos e bem intencionados”, e por ser “contraproducente” (Rp. 904). A prática
é também desaconselhada em estudo publicado em 2011 pelo Banco Mundial, por “inclinar fortemente as auditorias contra os contribuintes, solapando a tão necessária percepção de justiça do sistema tributário” (Charles Vellutini, “Key principles of risk-based
audits”).

O princípio da moralidade administrativa não se satisfaz com a retidão pessoal de cada servidor, que não colocamos minimamente em dúvida, exigindo mecanismos que garantam práticas
republicanas mesmo da parte de um hipotético agente impressionável ou mal intencionado – o que o bônus variável de eficiência está longe de proporcionar.

Um cenário tão nebuloso não se constrói da noite para o dia. São anos de cuidadosa desconstrução do arcabouço de responsabilidade fiscal montado a partir do Plano Real. Mas há uma
rota de saída: que em 2022 o STF invalide o calote dos precatórios, como já fez em duas ocasiões anteriores, o orçamento secreto (até agora se decidiu apenas a liminar) e o bônus baseado em arrecadação (o RE 835.291, pendente de julgamento, versa sobre lei
estadual, mas o precedente servirá para a União). Que a Receita, órgão de Estado que sustenta a máquina pública, retome as suas atividades e obtenha o reajuste merecido e possível, sem quebra da Constituição. Dias melhores hão de vir.

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