No curso de 2023, diversas decisões relevantes foram proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em âmbito tributário. 

No curso de 2023, diversas decisões relevantes foram proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em âmbito tributário. O presente artigo se propõe a abordar brevemente um importante acórdão publicado em novembro passado que envolveu a possibilidade da criação de fundos estaduais atípicos custeados por contribuintes de ICMS como condição para que possam fruir de determinados benefícios fiscais. Trata-se da ADI nº 5.365/RJ.

Resumidamente, a ação direta ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) voltou-se contra os artigos 2º; 4º, caput e inciso I; e 5º, da Lei nº 7.428/2016, do estado do Rio de Janeiro [1], bem como de normas correlatas do Decreto nº 45.810/2016 e do Convênio ICMS nº 42/2016. A mencionada lei estadual, dentre outras previsões, instituiu o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (FEEF), cuja validade foi o objeto central da controvérsia.

Revogação do Feef e criação do FOT
Alerte-se, no entanto, que após o ajuizamento da ADI o estado do Rio de Janeiro editou a Lei nº 8.645/2019, que revogou a aludida Lei nº 7.428/2016 e o FEEF, para criar o Fundo Orçamentário Temporário (FOT) – cujos contornos são idênticos ao fundo revogado.

O Supremo rechaçou a alegação de perda superveniente de objeto suscitada pelo PGE-RJ, pois ausente estava o requisito de alteração substancial do complexo normativo objeto de análise, ao passo que ambos os fundos se destinam a promover o equilíbrio fiscal do estado e eram “remunerados” através da mesma metodologia de cálculo dos valores devidos.

Empréstimo compulsório
Na prática, o plexo normativo impugnado exigia a realização de depósitos em favor do FEEF/FOT como condição para a manutenção de benefícios fiscais de ICMS. Assim, a fruição do incentivo fiscal ficaria condicionada ao depósito ao FEEF do montante equivalente ao percentual de 10% aplicado sobre a diferença entre o valor do imposto calculado com e sem a utilização de benefício ou incentivo fiscal concedido à empresa contribuinte do ICMS.

Em sua argumentação, a CNI aduziu que os depósitos efetuados para a manutenção dos fundos teriam a natureza jurídica de empréstimo compulsório, razão pela qual haveria violação aos artigos 148 e 154 da CF/88 [2]. Contudo, a maioria do STF não acolheu essa argumentação por entender que o montante teria a natureza jurídica de ICMS e que o expediente adotado pelo estado do Rio de Janeiro teria, tão somente, reduzido os benefícios fiscais de ICMS em prol das contas públicas estaduais.

Violação da anterioridade
Outrossim, vale ressaltar que em sua inicial a CNI acarretou violação ao artigo 150, III, “b” e “c”, da CF/88 (princípio da anterioridade), tendo-se em vista que as normas impugnadas teriam eficácia imediata. No entanto, a controvérsia restou prejudicada considerando-se que o próprio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro suspendeu a eficácia do artigo 10, I, da Lei Estadual nº 8.645/2019, de maneira que as normas em tela entraram em vigor somente após os 90 dias contados da sua publicação.

Entendimento do relator no STF 
Retornando à controvérsia sobre a natureza jurídica dos fundos e dos depósitos, o ministro Luís Roberto Barroso (relator) afirmou que os recursos auferidos pelo FEEF/FOT têm por objetivo atingir o equilíbrio fiscal do estado, sem a destinação ou vinculação das receitas a qualquer despesa e que, a despeito de exibirem a nomenclatura de “fundos”, são, em verdade, fontes de recursos sem destinação de receita específica.

Nesse contexto, argumentou que o FEEF e o FOT se caracterizam como fundos atípicos e por essa razão não constituem unidades orçamentárias, não estão vinculados a um órgão ou a um gestor determinado nem são destinados a programas de trabalho específicos ou detalhados.

Expediente extravagante
À luz dessa argumentação, impossível deixarmos de notar o caráter paradoxal do expediente do estado do Rio de Janeiro que foi chancelado pelo STF. Ora, se o objetivo do FEEF e do FOT é promover o equilíbrio fiscal mediante a criação de um adicional de ICMS para contribuintes submetidos a regimes favorecidos de ICMS, por que simplesmente não se reduziu os benefícios fiscais?

Ao invés disso, o estado criou fundos atípicos para que os contribuintes depositassem valores que, segundo o STF, representam mero adicional de ICMS. Noutras palavras, a redução dos benefícios fiscais se deu de forma transversal mediante a criação de fundos autônomos que não se vinculam a quaisquer órgãos de controle e não possuem qualquer destinação específica.

Sob o ponto de vista de racionalidade da gestão pública, da arrecadação prática e da transparência, esse contexto é, no mínimo, extravagante. Isso porque, se tais fundos não se destinam a quaisquer programas específicos e detalhados, por qual razão foram criados?

Com efeito, se o problema a ser enfrentado era a quantia que estava sendo deixada de ser arrecadada em virtude da concessão de benefícios fiscais, parece-nos muito mais plausível e eficiente a mera redução quantitativa de tais benefícios, e não a criação de um adicional como condição para a sua fruição, com posterior destinação a um fundo atípico, visto que, em última análise, a consequência é a mesma. Denota-se, portanto, que a distinção entre tais opções possui, na verdade, contornos financeiros. De se ponderar, em paralelo, as implicações eventuais da criação dessa sistemática com o artigo 178 do CTN [3].

Sem prioridade
Frise-se que o próprio Supremo textualmente reconheceu a necessidade de que o FEEF/FOT não possua qualquer ordem de prioridade para a consecução de determinadas despesas em prejuízo de outras, sob pena de afronta do artigo 167, IV, da CF/88 [4].

A propósito, o dispositivo é importante para a análise do tema porque também foi veiculado pela CNI em sua inicial como fonte normativa constitucional violada pelas normas impugnadas, tendo-se em conta que a vinculação desse pretenso adicional de ICMS ao FEEF/FOT não estaria de acordo com os ditames constitucionais. Todavia, conforme já antecipado, o STF entendeu que a mera destinação dos depósitos aos referidos fundos não se traduziria como violação ao artigo 167, IV, da CF/88.

Drible no controle orçamentário
Novamente retornam as considerações realizadas supra quanto à conveniência da criação dos fundos em exame quando seria possível a mera redução dos benefícios fiscais de ICMS, dado que o montante destinado ao FEEF/FOT não pode possuir destinação específica.

Em nosso sentir, a atuação do estado do Rio de Janeiro se transveste como uma forma do estado de escapar do controle orçamentário “padrão” e driblar as normas tributárias de regência, o que levanta sérios questionamentos quanto à responsabilidade orçamentária dos entes federativos.

Nessa esteira, compartilhamos o entendimento segundo o qual os depósitos ao FEEF/FOT não possuem natureza de ICMS, mas sim de contribuições.

Isso porque a mera destinação da receita dos valores depositados está em desacordo com o artigo 167, IV, da CF/88, que é de clareza translúcida. Essa conclusão também se sustenta pelo fato de que, inevitavelmente, a justificativa de que os fundos buscam promover o “equilíbrio fiscal” do estado tem como consequência a premissa de que as despesas dos fundos serão específicas (e não genéricas), isto é, voltadas para determinado fim.

Invasão de competência
Mas ainda que considerássemos que os depósitos possuem natureza de contribuições, a pretensão do estado do Rio de Janeiro também seria inconstitucional, vez que os estados não possuem competência para instituir contribuições além daquelas previstas no artigo 149, § 1º, da CF/88 [5]. Ou seja, sob qualquer prisma, o expediente estadual revela-se em rota de colisão com a Constituição.

Assim, mencione-se que é irrelevante o fato de que os depósitos se sujeitam ao repasse de 25% aos municípios fluminenses, como ocorre com o ICMS. Deveras, é possível que essa determinação tenha sido inserida nas normas estaduais com o fim de evitar questionamentos e insatisfação por parte dos municípios situados no estado do Rio de Janeiro.

Termômetro 
Por fim, cabe ressaltar que a decisão ganha importância porque se apresenta como um termômetro da posição da corte com relação à possibilidade da criação de fundos por parte dos estados que exigem, geralmente, o pagamento de “adicionais de ICMS” como contrapartida à fruição de incentivos fiscais relacionados a esse imposto.

Esperamos que os apontamentos trazidos no presente artigo possam trazer maior amadurecimento ao tema, que reiteradamente será apresentado à Suprema Corte, bem como suas implicações federativas, especialmente diante de um contexto de recente aprovação da reforma tributária que altera diversas regras de competências tributárias. [1] Art. 2º A fruição do benefício fiscal ou incentivo fiscal, já concedido ou que vier a ser concedido, fica condicionada ao depósito ao FEEF do montante equivalente ao percentual de 10% (dez por cento) aplicado sobre a diferença entre o valor do imposto calculado com e sem a utilização de benefício ou incentivo fiscal concedido à empresa contribuinte do ICMS, nos termos do Convênio ICMS 42 , de 3 de maio de 2016, já considerado no aludido percentual a base de cálculo para o repasse constitucional para os Municípios (25%).

Art. 4º Constituem receitas do Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal – FEEF:

I – depósito no valor correspondente ao percentual 10% (dez por cento) aplicado sobre o montante da diferença entre o valor do imposto calculado com e sem utilização de benefício ou incentivo fiscal, concedido a empresa contribuinte do ICMS, nos termos do Convênio ICMS 42 , de 3 de maio de 2016, já considerado o repasse constitucional para os municípios.

Art. 5º O descumprimento do disposto no art. 2º desta lei resultará em:

I – perda automática, não definitiva, no mês seguinte ao da fruição dos respectivos benefícios e incentivos fiscais ou financeiros, se o contribuinte beneficiário ou incentivado não efetuar, no prazo regulamentar, o depósito previsto no art. 2º desta Lei;

II – perda definitiva dos respectivos benefícios e incentivos fiscais ou financeiros, se o contribuinte beneficiário ou incentivado não efetuar, no prazo regulamentar, o depósito previsto no art. 2º desta Lei por 3 (três) meses, consecutivos ou não. [2] Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios;

Art. 154. A União poderá instituir:

I – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição; [3] Art. 178 – A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104. [4] Art. 167. São vedados:

(…) IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo; [5] Art. 149. (…) § 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, por meio de lei, contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensões.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-jan-31/criacao-de-fundo-atipico-pelo-rj-e-forma-de-driblar-normas-tributarias/

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