LOCAÇÃO DE VEÍCULOS TRIPULADOS NÃO SE SUJEITA AO ICMS NEM AO ISS

Trata-se de saber se a locação de veículos com motoristas configura ou não serviço de transporte, sujeitando-se seja ao ISSQN (quando os deslocamentos verificados se limitem a um Município), seja ao ICMS (deslocamentos interestaduais ou intermunicipais).

Para a presente análise, considerar-se-á um contrato em que os veículos e os motoristas ficam à disposição da empresa locatária[1], que define unilateralmente: (a) quando um veículo locado será utilizado; (b) que veículo utilizar em cada situação; (c) se este será dirigido por um dos motoristas fornecidos ou por um empregado da locatária; (d) que itinerário será seguido; (e) se, diante da reiteração de certos trajetos em determinados horários, haverá ou não o estabelecimento de rotas fixas a serem atendidas pelos veículos e pelos motoristas disponibilizados pela locadora, etc.

Em regra, a remuneração da locadora consiste numa parcela fixa, correspondente ao aluguel dos veículos por todo o mês e à disponibilização dos motoristas por um número determinado de horas, à qual pode acrescer-se uma parcela variável correspondente ao número de horas extras dos motoristas, caso estas se verifiquem.

Como é natural, a locatária pode utilizar-se dos veículos e dos motoristas para deslocar-se no âmbito de um mesmo Município, ou entre Municípios e Estados distintos.

Diante de tal quadro, alguns Estados têm equiparado o contrato em tela – especialmente quando a empresa locatária, por sua própria iniciativa, estabelece rotas fixas a serem percorridas pelos veículos e motoristas disponibilizados pela locadora – a um contrato de transporte, exigindo ICMS sobre o seu valor total.

Igual pretensão poderiam, em tese, manifestar os Municípios, nos casos em que o deslocamento seja estritamente confinado aos seus lindes, já que o transporte estritamente municipal é sujeito ao ISSQN.

É sobre a validade de tal enquadramento que cuidará este artigo.

  1. SOBRE A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA.

Principalmente no que toca aos impostos, cujos fatos geradores são situações próprias do particular, reveladoras de riqueza (CF, art. 145, § 1º) e sem qualquer vínculo com atuações estatais (CTN, art. 16), a Constituição cuidou de definir de forma expressa e rígida a competência dos entes políticos, por meio da enunciação dos fatos tributáveis (que constituirão o aspecto material da hipótese de incidência das leis impositivas a serem editadas).

Tal enunciação faz-se com recurso a conceitos fechados, que contêm notas características irrenunciáveis[2], cuja ausência impede o enquadramento do fato real ao conceito abstrato.

Quando tais conceitos provenham do Direito Privado, é neste que se devem pesquisar os respectivos significados.

Isso porque, quando a Constituição utiliza-se de um conceito já definido pelo direito pré-constitucional, sem o alterar, o que se tem é que o adotou pressupondo o seu conteúdo[3].

Nesse sentido é o preceito declaratório do art. 110 do CTN – que obviamente não impede a evolução dos institutos de Direito Privado, no âmbito do próprio Direito Privado (não impede, v.g., que uma lei altere o conceito de herança no Código Civil) – mas veda o descolamento, a qualquer tempo, entre a acepção tributária e a civilística do termo empregado pela Constituição para atribuir as competências impositivas (impedindo, p.ex., que o imposto sobre heranças incida sobre algo que, naquele momento, não é considerado herança para fins privados).

Bem por isso, o STF declarou inconstitucionais, dentre outras, a lei ordinária que fazia incidir contribuição sobre a folha de salários nos pagamentos feitos a avulsos, autônomos e administradores, por ofensa à redação original do art. 195, I, da Constituição (Lei nº 7.787/89, art. 3º, I – STF, Pleno, RE nº 166.772/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ 16.12.94), e a lei que alargava a base de cálculo do PIS e da COFINS antes da EC nº 20/98, indo além do faturamento autorizado na redação originária do mesmo dispositivo constitucional (art. 3º, § 1º, da Lei nº 9.718/98 – STF, Pleno, RE nº 346.084/PR, Rel. para o acórdão Min. MARCO AURÉLIO, DJ 01.09.2006).

É, portanto, no Direito Privado que se deve buscar o conceito de serviço de transporte, que atrai a incidência do ISSQN (quando local) ou do ICMS (quando intermunicipal ou interestadual).

  1. IRREDUTIBILIDADE DA LOCAÇÃO DE VEÍCULOS COM MOTORISTAS AO CONCEITO PRIVADO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE.

Dispõe o Código Civil:

“Art. 730. Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas.”

Por meio de tal contrato, impõe-se ao prestador o dever de levar coisas ou pessoas de um lugar para outro, por seus próprios meios, sobre os quais mantém controle pleno e exclusivo.

Nesse sentido, a doutrina clássica de PONTES DE MIRANDA:

[Transporte] é o contrato pelo qual alguém se vincula, mediante retribuição, a transferir de um lugar para outro pessoa ou bens. (…) O freguês do transporte sabe que o transportador tem o veículo e os demais elementos para cumprir o que promete. Não há aleatoriedade; a comutatividade ressalta.”[4]

No serviço de transporte, reitere-se, o prestador mantém a posse direta do veículo, a qual não é de forma alguma transferida para o contratante.

Não se cogita, com efeito, da possibilidade do contratante de uma mudança ou do passageiro de um táxi ou de um avião de carreira (ainda que compre todos os assentos) assumirem a condução do veículo ou terem o dever de abastecê-lo. É o que registra PONTES DE MIRANDA:

“Não há locação de coisa no transporte, porque o transportador é que utiliza o veículo. Se A telefonou ao ponto de táxi para que o apanhasse à porta de casa e o levasse à cidade, ou a algum bairro, o contrato é de transporte, que se enquadra, indiscutivelmente, na figura da empreitada. Mas, se chega ao chofer, e A diz que prefere guiar o automóvel, mesmo que pague pelo relógio, não há contrato de transporte, mas de locação. É o que acontece quando se vai a alguma garagem alugar carros. (…) De regra, o transportador é o possuidor imediato.[5]

Já na locação de veículos, mesmo que com motorista, o locatário adquire temporariamente a posse direta do veículo, tendo total ingerência sobre ele (para dizer se, quando, por quem e em que condições será utilizado) e responsabilizando-se pelo seu abastecimento.

Ademais, o motorista acaso fornecido pela locadora deve seguir todas as ordens do locatário, sem controle sobre o itinerário, os horários e as pessoas a transportar e – o que é extremamente importante – sem poder recusar-se a atuar quando demandado, faculdade que o prestador de transporte (salvo o transporte público de passageiros) sempre detém.

A distinção é atestada pela jurisprudência:

ISS. Contrato de locação de bem móvel. Motoristas cedidos pela locadora. Não desnatura o contrato de locação a circunstância de a empresa locadora pôr à disposição da locatária manobristas para o melhor aproveitamento dos veículos cedidos. Recurso extraordinário não conhecido.

(…)

A espécie evoca a freqüente de locação de automóvel, quando a empresa coloca, ao dispor do cliente, um motorista que conduz o carro segundo a orientação do locatário. À vista do objeto principal de tais avenças, não se nega sua natureza de locação. Afirma-o, a propósito, com a autoridade de especialista no tema, Bernardo Ribeiro de Moraes. Menciona o consagrado professor o seguinte caso prático, que prefigura locação de bem móvel, de acordo com os elementos típicos desse negócio jurídico:

‘(…) o locador de veículos (automóveis, barcos, aviões, etc.) apenas entrega o veículo ao locatário para que este guie ou conserve o veículo em seu poder durante certo período de tempo. Essa locação pode ser feita com ou sem condutor, fato que não desnatura o contrato (o essencial é que o objeto do contrato não seja o transporte).’ (Doutrina e Prática do Imposto sobre Serviços. São Paulo: RT, 1975, PP. 372-3.” (STF, 2ª Turma, RE nº 107.363/SP, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, DJ 01.08.86)

 

Anulatória de débito fiscal. ISSQN. Contratos de transporte e de locação. Locação armada ou ‘time charter’. Admissibilidade e caracterização. Observância aos limites do poder de tributar.

No contrato de transporte ou fretamento, em que se dá o veículo a frete, há a constituição de uma mera obrigação de fazer, ou seja, o transporte por um número de viagens ajustado (ponto a ponto), um prazo certo e mediante quantia determinada, ou seja, frete.

Por outro lado, o contrato de aluguel se caracteriza na cessão de posse imediata do veículo, através de contrato de locação e mediante o recebimento do aluguel. Pode o locador ceder o uso do veículo a outrem, por certo tempo, já devidamente armado e equipado. Nesse caso, se o locador se submete às condições baixadas pelo locatário quanto ao cumprimento de horários estabelecidos e ao controle de presença e permanência dos empregados em serviço, à alteração unilateral pelo locatário dos horários da prestação dos serviços, bem como da escola a ser atendida e, ainda, obedece às rotas apresentadas pelo locatário, o serviço do motorista constitui mero acessório ao contrato principal de locação de coisa, qual a do ônibus, caracterizando o contrato de locação ‘time charter’. É imperiosa a imposição de limites ao poder de tributar. E a observância dos conceitos jurídicos constitui um desses limites. Somente o legislador poderá atribuir efeitos tributários distintos, alterando o alcance e o conteúdo dos institutos e conceitos do Direito Privado, se inexistir obstáculo na Constituição. Não o intérprete e aplicador da lei”. (TJMG, Processo nº 1.0024.02.802542-7/001, Rel. Des. GOUVÊA RIOS, DJ 05.11.2004)

Anote-se, para fim de esclarecimento, que o contrato de time charter caracteriza-se pela concomitante locação de coisas e serviços e é regulamentado pelas normas de locação de coisa, uma vez que os serviços locados são meramente acessórios[6].

A distinção traçada pela doutrina e pela jurisprudência já foi também acatada pelo Estado de Minas Gerais (que hoje a rejeita) ao responder a Consulta de Contribuinte nº 301/2006:

“É importante a distinção do que venha a ser ‘locação de veículo’ e ‘contratação de serviços de transporte’:

– na locação, além de se exigir o contrato formal, o contribuinte locatário deve ter a posse do veículo e operá-lo como se fosse próprio (art. 222, inciso VII, Parte Geral do RICMS/2002);

– na contratação do serviço, não é necessária a formalização do contrato e nem que o veículo seja operado pelo contratante. Neste caso, o transporte não é considerado como próprio e há incidência do ICMS, excetuadas as desonerações previstas na Legislação:.

Portanto, os veículos utilizados pelo contribuinte sob contrato de prestação de serviço de transporte (agregados), ainda que com cláusula de exclusividade, não podem receber o mesmo tratamento dispensado aos veículos próprios e arrendados.”

Em síntese, os quatro pontos abaixo desautorizam a qualificação da atividade em tela como serviço de transporte, mesmo quando o locatário, por sua própria iniciativa, estabeleça rotas a serem cumpridas pelos veículos e pelos motoristas fornecidos pela locadora:

  1. a remuneração devida à locadora não varia segundo o número de trechos cumpridos pelos seus veículos ou pela extensão de tais trechos, e sim da quantidade de veículos e da quantidade e da carga horária dos motoristas, independentemente de serem ou não acionados – o que destoa do serviço de transporte;
  2. todos os padrões de utilização dos veículos são estabelecidos pelo locatário, o que demonstra ser ele o detentor de sua posse direta, não sendo dado ao motorista recusar-se a atuar quando solicitado (ao passo que o transportador pode recusar-se a contratar);

III. a observação do item precedente reforça-se pelo fato de os veículos permanecerem ao inteiro dispor do locatário (e poderem ser utilizados por ele) mesmo fora do horário de trabalho dos motoristas, não podendo ser empregados pela locadora para qualquer outra função ou em qualquer outra condição senão aquelas determinadas pelo cliente, o que tampouco acontece na relação de transporte;

  1. o combustível, em todos os casos – inclusive no das rotas fixas, que nada mais são do que rotas normais de veículos com motorista cuja reiteração é livremente determinada pelo locatário – é custeado por este, o que outra vez é de todo incompatível com o contrato de transporte.

Registre-se ademais que, exatamente por não ter controle sobre os itinerários a serem seguidos por seus motoristas, a locadora – mesmo que fosse abusivamente qualificada como transportadora – não teria sequer como saber que imposto pagar, se o ISS (trajetos intramunicipais) ou o ICMS (trajetos intermunicipais ou interestaduais).

Em face do exposto, concluímos que o contrato de locação de veículos com motoristas – tal como descrito neste estudo, e mesmo que haja rotas fixas determinadas pelo locatário – encontra-se fora do campo de incidência do ICMS e do ISSQN, por não configurar serviço de transporte.

[1] As conclusões deste artigo aplicam-se também à locação contratada com pessoa física. Porém, dada a maior relevância econômica (e tributária) dos contratos firmados com empresas, o texto se referirá somente a esta hipótese.

[2] Segundo MISABEL DERZI (Direito Tributário, direito penal e tipo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988), a constatação de que o Direito Tributário brasileiro é inserido no contexto da federação – que exige rígida repartição de competência, infensa a conflitos (CF; art. 146, I) – sendo informado ainda pela segurança jurídica e pela praticidade, impõe a adoção do método conceitual na compreensão das regras de competência e das leis impositivas, o que se convencionou chamar de “tipicidade fechada”.

[3] HUMBERTO ÁVILA, Limites à Tributação com Base na Solidariedade Social, in Solidariedade social e tributação. Coord. MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODÓI. São Paulo: Dialética, 2005, p. 73-74; LUÍS ROBERTO BARROSO. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3 ed.. São Paulo: Saraiva, p. 130.

[4] Tratado de Direito Privado, vol. 45, Campinas: Bookseller, p. 34-5

[5] Op. cit., p. 44-45.

[6] J. C. SAMPAIO DE LACERDA, Curso de Direito Privado da Navegação, vol. I, Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 3ª ed., p. 167).

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