LEIS DOS ESTADOS SOBRE DEPÓSITOS JUDICIAIS DESRESPEITAM A CONSTITUIÇÃO

A Lei 9.703/98 determina a transferência imediata para a União dos tributos federais depositados pelo contribuinte em processos administrativos ou judiciais, aplicando-se inclusive aos efetuados antes de sua entrada em vigor. E impõe a sua devolução em 24 horas, com Selic, em caso de derrota da Fazenda. O risco de calote é próximo de zero, pois o diploma autoriza a Caixa Econômica Federal a sacar as quantias restituendas diretamente da Conta Única do Tesouro Nacional.

Importante notar que o regime não se estende a todos os depósitos feitos perante a Justiça Federal, cuja competência vai muito além da discussão de tributos, e nem abrange os outros ramos do Judiciário mantidos pela União, como a Justiça Eleitoral e – imagine-se o escândalo – a Justiça do Trabalho.

Atacado na ADI 1.933/DF, o sistema foi ratificado aos fundamentos centrais de que (a) não há instituição irregular de empréstimo compulsório, pois o depósito tributário é faculdade, não dever; (b) nem confisco, porque se garante a restituição pronta e integral; (c) e tampouco ofensa à separação dos Poderes, já que o recebimento e a administração dos depósitos não constituem atividade jurisdicional[1]. Reforça esse ponto o artigo 139 do CPC, que define o depositário como simples auxiliar do juízo[2] – cujos atos não têm, portanto, caráter judicial.

Ainda que constitucional, a lei teve dois efeitos deletérios: (i) atiçou a cobiça da Fazenda Nacional por dinheiro em lugar de outras garantias nas execuções fiscais, jogando por terra o princípio da menor onerosidade, com as bênçãos do STJ[3]; e (ii) fê-la apostar na morosidade judiciária, pois, já dispondo livremente dos recursos, ganha mais em protelar reveses (que a obrigarão a devolvê-los) do que em antecipar êxitos.

Voltando ao acórdão, nota-se que registra a dúvida do STF quanto à capacidade dos Estados de darem igual garantia de devolução. É que diplomas estaduais posteriores à Lei 9.703/98 e vagamente inspirados nela já tinham, àquela altura, sido submetidas ao crivo da Corte.

Na Medida Cautelar na ADI 2.214/MS, tratava-se de lei sul-mato-grossense que transferia para os cofres estaduais os depósitos de tributos de sua competência e ordenava, à falta de restituição ao contribuinte vencedor, o bloqueio das contas do Estado. A liminar foi denegada aos mesmos fundamentos listados nos tópicos (a) a (c) acima[4], e a ação perdeu o objeto antes do exame do mérito.

Também anterior à ADI 1.933/DF foi a ADI 3.458/GO, versando lei goiana que criava conta única de depósitos judiciais e extrajudiciais, à qual eram vertidos 100% dos depósitos não fiscais e 50% dos relativos a tributos estaduais, sendo essa última parcela – e só ela – desde já repassada aos cofres públicos. Além desse encaixe imediato, para cuja restituição criava-se um fundo de 20% do saldo da conta única, outra vantagem para o Estado residia na apropriação do spread bancário, é dizer, da diferença entre os juros decorrentes da aplicação financeira do saldo da conta única e os índices devidos aos depositantes. A lei foi anulada por vício de iniciativa (por ter sido proposta pelo Executivo, tendo-se afirmado que cabia ao Judiciário), ofensa à separação dos Poderes e invasão da competência federal para legislar sobre Processo Civil[5]. Dos três fundamentos, o único que subsiste na atual jurisprudência do Supremo é o último.

Um mês depois do julgamento da ADI 1.933/DF foram examinadas, na mesma sessão, três ações diretas sobre o tema, a saber:

  • ADI 2.855/MT, tendo por objeto lei mato-grossense que, sem liberar os depósitos judiciais para o Tesouro, limitava-se a carreá-los (tributários ou não) para uma conta única e a autorizar o Judiciário a apropriar-se do spread. O STF declarou-a inconstitucional por vício de iniciativa – que fora do Judiciário, e agora se entende como não atendendo a nenhum dos incisos do artigo 96 da Carta[6];
  • ADI 2.909/RS, sobre lei gaúcha essencialmente idêntica à lei do Mato Grosso referida acima, e invalidada pela mesma razão[7];
  • ADI 3.125/AM, a respeito de lei amazonense similar às duas anteriores, censurada por vício de iniciativa (fora proposta pelo Judiciário) e por invasão da competência federal para legislar sobre Processo Civil[8].

Note-se a diferença. No primeiro caso, o Executivo estadual queria acesso imediato aos depósitos tributários. Nos três últimos, os Judiciários locais pretendiam apropriar-se do spread relativo aos depósitos tributários ou não. E o segundo é um misto das duas situações.

Ambas as pretensões baseiam-se na premissa de que o Estado seria, a um tempo, depositário e depositante dos valores confiados pelas partes. Noutro dizer: estas os entregariam ao Judiciário e ele, num segundo momento, os custodiaria em um banco. Se fosse assim, o tema seria de Direito Financeiro (gestão de recursos que transitam pelos cofres públicos), sujeito à competência concorrente dos três entes federados, nos termos dos artigos 24, inciso I, e 30, incisos I a III, da Constituição.

No que tange especificamente aos spreads, a consequência seria que o Estado ficaria obrigado a pagar os índices legais ao vencedor, podendo lançar mão de qualquer rendimento que os excedesse.

Só que assim não é, pois, como anotou o STF ao indeferir a liminar na ADI 1.933/DF, “o juiz figura no depósito judicial não como depositante ou depositário, mas como fiscal”[9]. A relação entre o depositante e o banco é direta, como aliás decorre do artigo 1.219 do CPC[10].

Tanto isso é verdade que, em caso de remuneração insuficiente dos depósitos pelo banco, é exclusivamente deste a legitimidade para responder pelo dano causado ao vencedor da demanda, seja ele o particular (na esteira da Súmula 179 do STJ), seja o próprio Estado, que não pode se voltar contra o depositante[11]. Se o Estado fosse o depositário, a responsabilidade seria sua no primeiro caso, e não teria sentido a sua pretensão (aliás, derrotada) no segundo.

Não sendo de finanças públicas, a disciplina dos depósitos judiciais é mesmo matéria processual, privativa da União. A conclusão não é afastada pelo caráter não jurisdicional daqueles, afirmado pelo STF. É o próprio artigo 139 do CPC que dispõe que as atribuições dos auxiliares do juízo – dentre os quais está o depositário – “são determinadas pelas normas de organização judiciária”. E nem poderia ser diferente, pois da higidez dos depósitos depende o resultado útil dos processos em que realizados.

Quanto aos spreads, o que se tem é uma briga entre os Judiciários estaduais e os bancos depositários – que, vale lembrar, são públicos[12]. Trata-se, a nosso ver, de um imposto estadual sobre os lucros das instituições financeiras, no que originados dos depósitos judiciais, o que não tem arrimo na Constituição. O imposto de renda é federal, e de sua arrecadação participam os Estados e os Municípios, na forma do artigo 159, inciso I, da Constituição.

A esses debates, nem sempre postos nos termos acima, seguiram-se as Leis federais 10.819/2003 e 11.429.2006, que referiremos brevemente, eis que revogadas pela Lei Complementar 151/2015. Tratava-se de permitir aos Municípios e aos Estados lançar mão de 70% dos depósitos judiciais de tributos, desde que mantivessem um fundo para garantir a satisfação do contribuinte vencedor. Constatada a insuficiência do fundo, e omitindo-se o ente público em complementá-lo, o banco reteria futuros depósitos judiciais até a regularização do saldo.

A Lei Complementar 151, por sua vez,

Lei Complementar 151/2015: transferência de 70% dos depósitos e em processos judiciais ou administrativos, tributários ou não, de que os Estados e Municípios sejam parte – ADI 5.361 (AMB)

Piauí: Lei 6.704/2015: transferência de 70% dos depósitos tributários ou não – ADI 5.392 (AMB)

Minas Gerais: Lei 21.720/2015: transferência de 70% dos depósitos tributários ou não (75% no primeiro ano e do estoque) – ADI 5.353 (PGR) – decisão liminar Teori – a cláusula 16 do contrato entre o Estado e o BB prevê a possibilidade de a lei ser declarada inconstitucional… restituição dos depósitos em 360 dias

Paraíba: Lei Complementar estadual 131/2015 (60%) – ADI 5.365 (PGR)

Rio de Janeiro: Lei Complementar estadual 147/2013 – ADI 5.072/RJ (PGR)

Paraná: Lei Complementar estadual 159/2013 – ADI 5.099/PR (PGR) – decisão liminar Barroso

A proporção é 70×30 para contribuintes que depositam?

ADI nº 4.425/QO-DF – Pleno, Rel. Min. LUIZ FUX, DJe 04.08.2015

  1. Delega-se competência ao Conselho Nacional de Justiça para que considere a apresentação de proposta normativa que discipline (i) a utilização compulsória de 50% dos recursos da conta de depósitos judiciais tributários para o pagamento de precatórios e (ii) a possibilidade de compensação de precatórios vencidos, próprios ou de terceiros, com o estoque de créditos inscritos em dívida ativa até 25.03.2015, por opção do credor do precatório.

Matéria processual. Não se trata de matéria de finanças públicas, porque o dinheiro é privado, sem o menor vínculo com o Estado (talvez nos depósitos de tributos haja alguma possibilidade). Só se for como empréstimo, mas aí entra a regra de ouro do Scaff

Se fosse matéria de finanças públicas, os entes subnacionais não poderiam afastar-se da LC 151

O Estado pode se apropriar das coisas dadas em garantia de ações judiciais? Por que um tratamento diverso para o dinheiro?

O Judiciário quer uma parte dos depósitos porque vinculados a ação que corre perante ele. Mas a sua remuneração faz-se por custas e taxa. Trata-se de um imposto sobre o lucro dos bancos.

Despir um santo para vestir outro.

Se as ações privadas com depósito acabarem no mesmo ritmo em que entram (congestionamento baixo ou 0), decerto faltarão recursos, pois o levantamento será sempre por uma das partes privadas, jamais pelo Estado.

Todas as ações diretas referidas até agora foram propostas pelo Conselho Federal da OAB

[1] STF, Pleno, ADI 1.933/DF, Relator Ministro Eros Grau, DJ 03.09.2010.

[2] Reiterado no artigo 149 do Novo CPC.

[3] Tema que discutimos em nossa coluna de 16.04.2014. https://www.conjur.com.br/2014-abr-16/consultor-tributario-contribuinte-executado-paga-mesmo-quando-ganha

[4] STF, Pleno, ADI 2.214-MC/MS, Relator Ministro Maurício Corrêa, DJ 19.04.2002.

[5] STF, Pleno, ADI 3.458/GO, Relator Ministro Eros Grau, DJe 16.05.2008.

[6] STF, Pleno, ADI 2.855/GO, Relator Ministro Marco Aurélio, DJe 19.09.2010.

[7] STF, Pleno, ADI 2.909/RS, Relator Ministro Carlos Britto, DJe 11.06.2010.

[8] STF, Pleno, ADI 3.125/AM, Relator Ministro Carlos Britto, DJe 18.06.2010.

[9] STF, Pleno, ADI 1.933-MC/DF, Relator Ministro Nelson Jobim, DJ 31.05.2002.

[10] “Art. 1.219. Em todos os casos em que houver recolhimento de importância em dinheiro, esta será depositada em nome da parte ou do interessado, em conta especial movimentada por ordem do juiz.”

[11] STJ, 1ª Turma, REsp. nº 1.234.702/MG, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe 10.02.2012.

[12] Confira-se a redação do CPC em vigor, reiterada no artigo 840, inciso I, do Novo CPC:

“Art. 666. Os bens penhorados serão preferencialmente depositados:

I – no Banco do Brasil, na Caixa Econômica Federal, ou em um banco, de que o Estado-Membro da União possua mais de metade do capital social integralizado; ou, em falta de tais estabelecimentos de crédito, ou agências suas no lugar, em qualquer estabelecimento de crédito, designado pelo juiz, as quantias em dinheiro, as pedras e os metais preciosos, bem como os papéis de crédito. (…)”

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