Inexistência de similar nacional não garante a obtenção de ex-tarifário

A alteração das alíquotas do imposto de importação por ato do Executivo tem sido assegurada pelas sucessivas Constituições brasileiras. Trata-se de exceção à legalidade tributária, voltada a ajustar a tributação aos objetivos traçados para o comércio exterior. O ex-tarifário é um dos instrumentos empregados para esse fim. A teor do artigo 4º da Lei 3.244/57, “quando não houver produção nacional de matéria-prima e de qualquer produto de base, ou a produção nacional desses bens for insuficiente para atender ao consumo interno, poderá ser concedida isenção ou redução do imposto para a importação total ou complementar”.

Como se nota da locução em destaque, a inexistência de similar nacional é requisito necessário, mas não suficiente, para a concessão do ex-tarifário, que tem elevada carga de discricionariedade. Na mesma linha, o parágrafo 1º do mesmo artigo registra que a isenção ou a redução serão concedidas “a critério do Conselho de Política Aduaneira”. A análise do processo de concessão do ex-tarifário confirma essa leitura. Nos termos da Portaria ME 309/2019, o benefício pode alcançar bens de capital (BK) e bens de informática e de telecomunicações (BIT), mediante requerimento eletrônico a ser apreciado, em caráter preliminar, pela Secretaria de Desenvolvimento da Indústria, Comércio, Serviços e Inovação do Ministério da Economia (SDIC), que desde logo averiguará o cumprimento dos requisitos mínimos de conteúdo e forma (artigos 3º e 7º). Superada essa fase, dá-se início às consultas públicas, durante as quais fabricantes nacionais, associações e órgãos governamentais poderão contestar o pedido, comprovando a existência de similar nacional (artigos 8º a 11).

Ao fim, a SDIC elaborará parecer técnico relativo ao pleito e recomendará o seu deferimento ou indeferimento (artigo 15), levando em conta não apenas a ausência de produção nacional (artigos 12 e 13), mas também: 1) diretrizes das políticas governamentais; 2) absorção de novas tecnologias; 3) investimento em melhoria de infraestrutura; e 4) isonomia com bens produzidos no Brasil, no atendimento às leis e aos regulamentos técnicos e de segurança (artigo 14, inciso IV) — critérios que reforçam o caráter político do instituto, que se volta a garantir o alinhamento do imposto de importação às metas de comércio e desenvolvimento nacional traçadas pela União, atuando como instrumento de indução econômica.

Por fim, o pedido do contribuinte será decidido — com base nos mesmos critérios, mas sem vinculação à recomendação da SDIC — pela Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia (artigo 16). Se vinculação houvesse, não faria sentido mobilizar-se outra instância administrativa. A SDIC decidiria direta e imediatamente. O caráter discricionário do regime é reforçado pela reduzida possibilidade de recurso contra a decisão que o indefere, cabível apenas para arguir razões de legalidade (formais), e não de conveniência e oportunidade (artigo 18).

No STF é pacífico o entendimento quanto à liberdade do Executivo na manipulação das alíquotas dos impostos aduaneiros. No RE 570.680/RS (Pleno, relator ministro Ricardo Lewandowski, DJe 4/12/2009), ficou assentado que a Camex exerce uma “política fiscal discricionária”, que leva em conta “o papel do comércio exterior como instrumento para promover o crescimento da economia nacional e para o aumento da qualidade dos bens produzidos no país”. Essa também a visão do STJ, agora tratando especificamente da inexistência de um direito subjetivo à obtenção de ex-tarifário: “A concessão de ex-tarifários constitui ato discricionário, faculdade concedida à Administração Pública”, a ser exercida com base em “sua conveniência e oportunidade”, sem “gera[r], a princípio, direito subjetivo” para o particular (MS 11.285/DF, relator ministro Edson Vidigal, DJ 1/2/2006)

Para o TRF da 5ª Região, “a concessão da redução de alíquota na condição de ex-tarifário é ato discricionário da Administração Pública”, sujeita a “considerações de política setorial”, “inibindo[-se] portanto a interferência do Poder Judiciário no tocante ao mérito da concessão” (4ª Turma, AC 2007.83.00.000131-0, relator desembargador federal Lázaro Guimarães, DJ 28/7/2008). Também o TRF da 4ª Região afirma que, “diante da natureza discricionária do ato ora impugnado, é excepcional a possibilidade de intervenção judicial, que dependerá da demonstração de clara ilegalidade”, acrescentando que, “na eventual zona cinzenta, prevalecerá o juízo discricionário da autoridade administrativa, que não deverá ser substituído pelo juízo de conveniência e oportunidade do magistrado” (1ª Turma, AC 5005466-29.2015.4.04.7108, relator desembargador federal Amaury Chaves de Athayde, j. 29/3/2017)

A explicação para essa deferência do Judiciário face à decisão do administrador repousa na constatação de que, “para uma mesma conjuntura econômica encontram-se fundamentos objetivos para justificar tanto a abertura como o fechamento do mercado interno”, como ocorre no confronto entre “a necessidade de aumento da competição e a necessidade de proteção e desenvolvimento da indústria nacional”. Daí não ser possível, “no caso da definição da alíquota a ser aplicada na tributação da entrada de um certo produto no território nacional, que se chegue univocamente a uma decisão que seja consequência lógica e necessária, em certa realidade, de uma regra ou de um princípio específico e objetivo definido a priori” [1].

O entendimento do STJ não foi alterado no REsp 1.174.811/SP (1ª Turma, relator ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe 28/2/2014), como pode fazer crer a leitura isolada e algo voluntarista do item 4 da respectiva ementa:

“(…) 4. A concessão do ‘ex tarifário’ equivale à uma espécie de isenção parcial. Em consequência, sobressai o caráter declaratório do pronunciamento da Administração. Com efeito, se o produto importado não contava com similar nacional desde a época do requerimento do contribuinte, que cumpriu os requisitos legais para a concessão do benefício fiscal, conforme preconiza o artigo 179, caput, do CTN, deve lhe ser assegurada a redução do imposto de importação, mormente quando a internação do produto estrangeiro ocorre antes da superveniência do ato formal de reconhecimento por demora decorrente de questões meramente burocráticas”.

Diz-se voluntarista porque a parte final do texto revela que o regime foi deferido pela Administração, deixando claro que a discussão não versou sobre um eventual direito líquido e certo do contribuinte à sua obtenção. Muito pelo contrário, o item 1 da ementa reafirma a jurisprudência tradicional da corte sobre o caráter não vinculado da decisão. E o item 3 evidencia a verdadeira questão dos autos: saber se o contribuinte que requereu o ex-tarifário a tempo, mas que só o teve deferido com grande atraso, deve ou não ser punido pela demora da Administração:

“1. A concessão do benefício fiscal denominado ‘ex tarifário’ consiste na isenção ou redução de alíquota do imposto de importação, a critério da administração fazendária, para o produto desprovido de similar nacional, sob a condição de comprovação dos requisitos pertinentes.
(…)

  1. A injustificada demora da Administração na análise do pedido de concessão de ‘ex tarifário’, somente concluída mediante expedição da portaria correspondente logo após a internação do bem, não pode prejudicar o contribuinte que atuou com prudente antecedência, devendo ser assegurada, em consequência, a redução de alíquota do imposto de importação, nos termos da legislação de regência”.

A resposta negativa à pergunta formulada acima (deve o particular nessa específica situação pagar pela excessiva demora do poder público?) não significa sequer a atribuição de efeitos retroativos à decisão concessiva do ex-tarifário, como anota o relator: “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que as resoluções da Camex que reconhecem o direito à redução da alíquota do imposto de importação de determinada mercadoria não possuem efeitos retroativos, mas podem ter seus efeitos estendidos ao momento do desembaraço aduaneiro quando o benefício foi postulado antes da importação do bem, como é o caso dos autos”.

Os fundamentos da decisão foram outros: o princípio da razoabilidade e o artigo 12 do Decreto-Lei 2.472/88 [2], cuja aplicação foi analisada de forma individualizada para aquele caso concreto. Nem impressiona a Portaria SDIC 324/2019, segundo a qual “receberão recomendação técnica de concessão os pleitos de concessão de ex-tarifário de BIT, sem produção nacional equivalente, que sejam enquadrados como (…) BIT ativo imobilizado” (artigo 10, parágrafo 1º, inciso I). É que, como visto, as recomendações da SDIC não vinculam a Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, a quem cabe decidir de forma soberana os requerimentos de ex-tarifário.

Inaplicável, por fim, o artigo 110, inciso III, do Regulamento Aduaneiro [3], seja porque o comando pressupõe isenção sujeita a requisitos objetivos, seja principalmente porque o ponto ora em análise não é a restituição de imposto de importação pago antes do reconhecimento administrativo da isenção, mas, sim, a existência de direito líquido e certo à respectiva isenção — o que é coisa completamente diversa. O caso é, portanto, de cautela do contribuinte frente a um requerimento de ex-tarifário, que nunca pode ser dado como certo antes da efetiva concessão. [1] JOÃO MARCELO MÁXIMO DOS SANTOS. A definição da alíquota do imposto de importação — um caso de poder discricionário. Revista Dialética de Direito Tributário nº 82, 2002, p. 39 e ss. [2] “Artigo 12 – Nos casos e na forma previstos em regulamento, o ministro da Fazenda poderá autorizar o desembaraço aduaneiro, com suspensão de tributos, de mercadoria objeto de isenção ou de redução do imposto de importação concedida por órgão governamental ou decorrentes de acordo internacional, quando o benefício estiver pendente de aprovação ou de publicação dor respectivo ato.” [3] Prevê o citado dispositivo: “Artigo 110 – Caberá restituição total ou parcial do imposto pago indevidamente, nos seguintes casos: (…)
III — verificação de que o contribuinte, à época do fato gerador, era beneficiário de isenção ou de redução concedida em caráter geral, ou já havia preenchido as condições e os requisitos exigíveis para concessão de isenção ou de redução de caráter especial; (…)”.

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