Impasse no diferencial de alíquotas

Cabe às empresas se prepararem para esse embate, que promete esquentar o ano tributário desde os seus primeiros dias

Por Igor Mauler Santiago e Luan Moreira

Em 2015, a Emenda nº 87, editada em resposta à tentativa frustrada dos Estados de alterarem
a Constituição Federal por seus próprios meios (Protocolo ICMS nº 21/2011), finalmente submeteu as vendas diretas – operações e prestações interestaduais para consumidor final não contribuinte – à alíquota interestadual do ICMS, atribuindo ao Estado de destino
a parcela da arrecadação correspondente ao diferencial de alíquotas (Difal). Ainda em 2015, novamente indo além das suas forças, o Confaz editou o Convênio nº 93 para regulamentar a emenda constitucional. Em fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF)
invalidou as cláusulas desse convênio que pretendiam fazer as vezes da indispensável lei complementar, até então não editada. Num movimento que hoje praticamente dispensa fundamentação, modulou os efeitos dessa decisão, estendendo a vigência das cláusulas
anuladas até 31 de dezembro de 2021, salvo para os contribuintes que tinham ações ajuizadas na data do julgamento, para os quais a inconstitucionalidade gerou efeitos retroativos.
 
A data marcada pelo STF chegou, dando fim à autorização provisória de cobrança com base
no convênio, e sem que houvesse ainda a necessária lei complementar, cuja votação se encerrou em 20 de dezembro de 2021, mas que só foi publicada ontem (Lei Complementar nº 190/2022). Um efeito dessa demora é indiscutível: o Difal é inexigível entre 1º e 4
de janeiro deste ano. Isso poderia ser tudo, pois a Constituição só impõe a anterioridade anual e nonagesimal às leis instituidoras de tributos, não a estendendo às leis complementares de normas gerais. E o STF já decidiu que a superveniência destas últimas
basta para vivificar as leis estaduais que lhe sejam anteriores, as quais não são inválidas, tendo apenas a sua eficácia congelada (RE 1.221.330, sobre a exigência de ICMS na importação para uso próprio).
 
Cabe às empresas se prepararem para esse embate, que promete esquentar o ano tributário
desde os seus primeiros dias
 
Mas há dois poréns. Primeiro, o STF abandonou essa orientação, invalidando também as leis
estaduais preexistentes. O voto condutor do ministro Dias Toffoli sobre a modulação é inequívoco: as cláusulas do Convênio nº 93/2015 vigoram até 31 de dezembro de 2021, “tempo no qual o Congresso Nacional poderá ratificá-las por meio de lei complementar”;
e acrescenta: “a mesma solução” – vigência temporária, prorrogável somente por nova deliberação legislativa – “julgo ser necessária em relação à lei do Distrito Federal e, a fortiori, às leis dos demais Estados”. O que leva à primeira conclusão: não podem
nem pensar em exigir o Difal nas vendas diretas os Estados que não editaram novas leis após o julgamento do STF.
 
Segundo, há que se considerar o texto da Lei Complementar nº 190. Embora a Constituição
não o impusesse, o próprio legislador – em decisão política que privilegia a segurança do contribuinte e, por óbvio, nada tem de inconstitucional – optou por submetê-la ao “disposto na alínea c do inciso III do caput do artigo 150 da Constituição Federal”
(art. 3º), regra que institui a espera de 90 dias e exige a observância cumulativa da alínea b, que cuida da anterioridade anual. Como a sanção não veio em 2021, o diploma deve gerar efeitos apenas em 2023, o que – segunda conclusão – impede a exigência do
Difal nas vendas diretas durante todo o ano de 2022.
 
Nem cabe objetar que as anterioridades não se aplicam por não se estar a instituir tributo
novo, mas apenas a manter a repartição definida no convênio de um tributo que sempre existiu e que, até a EC 87/2015, cabia inteiro ao Estado de origem. A uma porque o caso é, sim, de criação do Difal nas vendas diretas, visto que a sua instituição anterior
foi declarada nula, tendo a sua cobrança sido temporariamente tolerada somente por imperativos financeiros (modulação). A duas porque a tese foi rechaçada pelo STF ao analisar o mérito da controvérsia, quando uma regra clara foi definida: nada de Difal sem
prévia lei complementar – vigente e eficaz, ça va sans dire.
 
Não cabe perscrutar aqui se as escaramuças federativas a que hoje assistimos de alguma
forma contribuíram para retardar a sanção. Mas, mesmo nesse caso, a responsabilidade da Presidência da República se limitaria aos quatro dias anteriores à publicação da lei, pois não foi aquela, e sim o Congresso Nacional, quem introduziu as anterioridades
no projeto. Daí resulta que o impasse não pode ser atribuído a tais conflitos, o que desde logo rechaça uma intervenção extraordinária do Supremo, por exemplo, prorrogando a modulação.
 
A solução, se houver alguma factível, há de vir dos poderes políticos: o veto ao artigo
3º da lei complementar teria permitido a sua vigência imediata, mas essa oportunidade já foi perdida. Outro caminho seria a revogação do citado dispositivo por lei complementar posterior, o que decerto suscitaria a questão da existência de um direito adquirido,
já incorporado ao patrimônio jurídico dos contribuintes, ao pagamento do tributo apenas em 2023.
 
Entrementes, cabe às empresas se prepararem para esse embate, que promete esquentar o ano
tributário desde os seus primeiros dias: uma ação em cada Estado, com todas as vicissitudes daí decorrentes. De tédio definitivamente não se morre nessa área.

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