Executivo sempre atuou contra o programa de alimentação do trabalhador

O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) foi criado pela Lei 6.321/76 para incentivar o fornecimento de alimentação nutricionalmente adequada aos empregados. Para tanto, o diploma autorizou que as empresas participantes deduzissem do seu lucro tributável [1] — reduzindo-o em no máximo 5% — o dobro das despesas comprovadamente realizadas com o programa.
O artigo 5º da Lei 9.532/97 pretendeu alterar o limite de abatimento de 5% do lucro tributável para 4% do imposto devido. A modificação leva à impossibilidade matemática do cálculo. De fato, como conjugar a regra de que a dedução (em dobro) deve fazer-se sobre o lucro tributável com a imposição de que ela fique limitada a um porcentual do tributo? Noutras palavras: a apuração de um dos elementos da base de cálculo (o teto das despesas do PAT dedutíveis do lucro tributável) fica a depender do prévio conhecimento do imposto devido, que lhe é lógica e cronologicamente posterior. Voltaremos ao tema adiante.

Figure-se uma empresa com 600 empregados, metade ganhando três e metade ganhando dez salários mínimos mensais, onde todos recebem 0,5 salário mínimo mensal a título de alimentação, e que obtém lucro tributável de R$ 100 milhões. A sua dedução máxima de PAT seria de 7.200 salários mínimos, ou R$ 8.726.400 (300 salários mínimos por mês, mais a dobra) [2]. Considerando-se os critérios da lei (e não os do decreto) e calculando-se o limite de 4% sobre o lucro tributável (e não sobre o imposto apurado), a empresa teria lucro tributável de R$ 96 milhões (R$ 100 milhões menos o dobro das despesas de PAT, com teto de R$ 4 milhões), o que lhe imporia um débito de R$ 23.976.000 de IRPJ + adicional [3].
Igualmente cônscio daquela impossibilidade lógica, o Executivo tentou resolvê-la prevendo que a parcela dedutível, em vez de corresponder ao dobro das despesas com alimentação (sujeitas a teto), passasse a corresponder ao produto destas (sem dobra) pela alíquota do imposto. Cotejando agora tributo (o resultado dessa multiplicação) com tributo (o teto de 4% do imposto apurado), e não mais base com tributo — como na impossível convivência das Leis 6.321/76 e 9.532/77 —, o Decreto 9.580/2018 (RIR/2018, artigos 641, caput, e 642) supera o impasse matemático, mas ao custo da primazia da lei, como adiante se verá.

Aplicando-se esses critérios ilegais à nossa hipotética empresa, ter-se-iam IRPJ + adicional de R$ 24.976.000, dos quais se abateria o teto de R$ 999.040 (25% dos 3.600 salários mínimos despendidos dariam R$ 1.090.800), levando-se a um débito de IRPJ + adicional da ordem de R$ 23.976.960, R$ 976 maior do que o decorrente das regras legais.
Mas não é só. Pretendendo interpretar a nova lei, a RFB editou a Solução de Consulta Cosit 79/2014, na qual consigna que o limite de 4% deveria contemplar apenas o IRPJ, mas não o seu adicional. Considerando esse novo teto, e seguindo na sistemática ilegal do RIR/2018 quanto ao mais, o abatimento ficaria limitado a R$ 600 mil (4% do IRPJ de R$ 15 milhões, sem o adicional), levando-se a um débito de IRPJ + adicional de R$ 24.376.000, R$ 400 mil superior àquele decorrente da aplicação da lei.

A ilegalidade foi agravada pelo Decreto 10.854/2021, que deu nova redação ao artigo 645, parágrafo 1º, do RIR/2018, impondo duas novas limitações ao benefício: (1) restrição da dedutibilidade aos valores pagos a empregados que recebam até cinco salários mínimos, caso a alimentação seja provida por meio de tickets (isto é, por meio de entidades facilitadoras de aquisição de refeições ou gêneros alimentícios); e (2) restrição da dedutibilidade, em qualquer caso, ao valor de um salário mínimo por trabalhador.

O inciso II não atingiria a empresa tratada no exemplo (pois todos os seus empregados recebem 0,5 salário mínimo mensal de alimentação), mas o inciso I vedaria a dedução dos valores pagos à metade de força de trabalho (300 empregados) que ganha mais de cinco salários mínimos mensais. A dedução — mantidos os demais critérios ilegais do RIR/2018, apenas para comparação — estaria, então, limitada a R$ 327.240 (15% dos 1.800 salários mínimos pagos aos empregados que ganham menos de cinco salários mínimos ao mês), o que está abaixo do teto de R$ 600 mil criticado acima), levando-se a um débito de IRPJ + adicional de R$ 24.648.760, R$ 672.760 maior do que o realmente devido.Como fica claro, os efeitos das restrições ilegais serão diferentes para cada empresa, segundo a composição de sua folha de salários e o valor do seu lucro tributável, mas é certo que elas sempre levarão à exigência de tributo indevido.

2. Análise das restrições legais e infralegais
2.1. O artigo 641 do RIR/2018

Como se viu, o comando desfigura completamente o benefício outorgado pela Lei 6.321/76, ao prever que a parcela dedutível equivale ao produto da alíquota de incidência pelo total (aliás simples, sem dobra) dos gastos com alimentação, em vez de equivaler ao dobro destes, e que a dedução se faça contra o imposto devido, e não contra a respectiva base de cálculo (o lucro tributável). Ao fazê-lo, extrapola abertamente os limites do poder regulamentar, valendo lembrar que a Constituição limita os decretos à fiel execução das leis (artigo 84, IV), admitindo apenas em caso excepcionais, expressamente listados, que inovem na ordem jurídica: organização e funcionamento da administração federal (artigo 84, VI, “a”), extinção de funções ou cargos públicos (artigo 84, VI, “b”), alteração das alíquotas de certos tributos (artigos 153, § 1º, e 177, § 4º, I, “b”). No mais, prestigiou o constituinte a reserva de lei, sob a óptica da tripartição dos Poderes.

Tais valores são resguardados com maior intensidade em matéria tributária, regida pelo princípio da legalidade estrita. Deveras, apenas a lei pode majorar tributos — ou, o que dá na mesma, restringir benefícios fiscais legalmente concedidos (Constituição, artigo 150, inciso I e parágrafo 6º; CTN, artigos 97, II, e 99). A jurisprudência do STF a respeito do tema é iterativa, bastando citar o RE 186.623/RS (Pleno, relator ministro Carlos Velloso, DJ 12/4/2002).

2.2. O artigo 5º da Lei 9.532/97 (artigo 642 do RIR/2018) e a Solução de Consulta Cosit 79/2014

Se a dedução se faz contra o lucro tributável, o limite de 4% a que se sujeita deve levar em conta a mesma base, sob pena de total impossibilidade lógica. É fato que o artigo 5º da Lei 9.532/97 refere-se expressamente ao teto de “quatro por cento do imposto de renda devido”. Mas o faz na equivocada premissa de estar disciplinando a dedução do imposto de renda relativo aos incentivos previstos no artigo 1º da Lei nº 6.321″ (parte inicial do dispositivo), quando o caso é, sem nenhuma dúvida, de dedução na base de cálculo do tributo.

A hipótese é, pois, de inaplicabilidade pura e simples da regra, por inexistência do respectivo suporte empírico — ou, o que dá na mesma, de sua inconstitucionalidade por ofensa à razoabilidade na acepção de congruência. Sobre o tema leciona Humberto Ávila que a razoabilidade exige, para qualquer medida, a recorrência de um suporte empírico existente, lembrando o acórdão do STF que invalidou, por se tratar de “vantagem destituída de causa e do necessário coeficiente de razoabilidade”, lei estadual que estendia o adicional de férias aos inativos (que, não trabalhando, não têm férias). A sua conclusão, aplicável à perfeição aqui, é a de que “desvincular-se da realidade é violar os princípios do Estado de Direito e do devido processo legal”[4].

Assim como aquela que dá adicional de férias a quem não tem férias, é inválida e inaplicável, por falta de apoio na realidade, a lei que limita dedução de imposto de renda não prevista em nenhuma lei anterior (pois o que havia e ainda há é a dedução contra o lucro tributável, base de cálculo do imposto de renda). Censurável nessa parte, data venia, a jurisprudência do STJ, que no mais confirma o direito à dedução em dobro e contra o lucro tributável. É ver, à guisa de exemplo:

4. Na espécie, o acórdão embargado deve ser integrado para constar que o provimento do recurso especial refere-se à declaração do direito da parte impetrante de calcular o incentivo fiscal, relacionado ao desconto em dobro das despesas com o PAT, sobre o lucro da empresa, chegando-se, assim, ao lucro real sobre o qual é calculado o adicional do imposto de renda, aplicando-se a limitação de 4% (quatro por cento) sobre o total do imposto de renda devido, após a inclusão do adicional.” (STJ, 1ª Turma, EDcl. no AgInt no REsp. 1.971.496/RS, relator ministro Benedito Gonçalves, DJe 26/5/2022)
O paradoxo fica claro no trecho destacado: após o desconto chega-se ao lucro, sobre o qual é calculado o imposto — até aqui, tem-se a ordem natural das coisas —, que serve de parâmetro para o desconto já realizado! Como isso é possível, com o máximo respeito, o STJ não disse e nem teria como dizer.
Porém, se contra todas as evidências prevalecer o entendimento de que o limite de dedução varia mesmo em função do imposto (e não do lucro tributável), força será pelo menos considerarem-se em conjunto o IRPJ e o seu adicional, e não apenas este, como orienta a Solução de Consulta Cosit 79/2014. De fato, como anota o STJ em iterativa jurisprudência (aqui invocada ad argumentandum), o artigo 3º, parágrafo 4º, da Lei 9.249/95 [5], em que se funda a manifestação da Receita Federal, veda apenas as reduções efetuadas após a apuração do valor do tributo, e não aquelas conducentes à apuração de sua base de cálculo (1ª Turma, AgInt no REsp. 1.727.805/SC, relator ministro Gurgel de Faria, DJe 25/5/2022; 2ª Turma, AgInt no REsp 1.864.021/RS, relator ministro Og Fernandes, DJe 14/10/2021).

2.3. O Decreto 10.854/2021

Aplica-se aqui tudo quanto dito sobe a legalidade estrita no item 2.1 supra. Isso porque a restrição da dedutibilidade aos valores pagos a empregados que recebam até cinco salários mínimos, caso a alimentação seja provida por meio de tickets, e — em qualquer caso — ao valor de um salário mínimo por trabalhador não tem a mais remota base legal. Bem por isso, essas limitações já têm sido invalidadas (TRF da 3ª Região, 3ª Turma, AI nº 5004217-10.2022.4.03.0000, relator desembargador Federal Nery Junior, DJe 26.07.2022; TRF da 1ª Região, AI 1009547-13.2022.4.01.0000, relator juiz federal convocado João Carlos Costa Mayer Soares, DJe 26/4/2022).

2.4. Inexistência de convalidação de qualquer das restrições analisadas

A Lei 14.442, de 02.09.2022, vigente desde a sua publicação, deu a seguinte redação ao caput do artigo 1º da Lei 6.321/76:
“Art. 1º. As pessoas jurídicas poderão deduzir do lucro tributável, para fins de apuração do imposto sobre a renda, o dobro das despesas comprovadamente realizadas no período-base em programas de alimentação do trabalhador previamente aprovados pelo Ministério do Trabalho e Previdência, na forma e de acordo com os limites dispostos no decreto que regulamenta esta Lei.”
Vê-se desde já que o legislador continuou prevendo que a dedução se dê contra o lucro tributável (e não contra o imposto devido) e corresponda ao dobro das despesas (e não ao produto destas pela alíquota de incidência), o que vale como uma desautorização adicional a todos os atos infralegais anteriores em sentido contrário e elimina qualquer possibilidade de invocar-se a seu favor a delegação legislativa externa operada na parte final do dispositivo.

Com efeito, ainda que essa fosse válida — e não é, como se verá —, é claro que o ato delegado jamais poderia contrariar o texto da lei delegante, sem falar que não se cogita nem mesmo em tese da convalidação retroativa de decretos expedidos antes da delegação.
Por essa razão de ordem cronológica, e também por ser intrinsecamente inconstitucional, a parte final da nova redação do artigo 1º da Lei 6.321/76 não respalda tampouco as novas restrições trazidas pelo Decreto 10.854/2021. Sobre o descabimento da delegação legislativa externa em matéria tributária — reforçado quanto aos benefícios fiscais pelo parágrafo 6º do art. 150 da Constituição — é a jurisprudência tradicional do STF (Pleno, ADI-MC 1.296/PE, relator ministro Celso de Mello, DJ 10/8/1995)

Nem se aplicam à situação analisada as recentes decisões do Pleno do STF que flexibilizam a legalidade estrita em matéria de variação de alíquotas de tributos (ADI 4.697/DF, relator ministro Edson Fachin, DJe 30/3/2017; RE 838.284/SC, relator ministro Dias Toffoli, DJe 22/9/2017; ADI 5.277/DF, relator ministro Dias Toffoli, DJe 25/3/2021; RE 1.043.313/RS, relator ministro Dias Toffoli, DJe 25/3/2021), visto que em todos esses casos havia patamares mínimos e máximos a serem observados pelo Executivo, ao passo que aqui — além de não se tratar de alíquota, mas da formação da base de cálculo — o que se tem é um cheque totalmente em branco assinado pelo legislador, que não dá a mínima orientação sobre o mérito ou a quantificação dos limites a serem instituídos pelo decreto autônomo.

3. Conclusão

Analisadas as múltiplas controvérsias a respeito do tema, concluímos que o contribuinte sujeito ao lucro real e participante do PAT tem direito a deduzir do seu lucro tributável — reduzindo-o em até 4% — o dobro das despesas realizadas no âmbito do programa.
Para além das razões jurídicas, que sã bastantes, cabe um protesto contra a incompreensível oposição dos sucessivos governos a programa tão relevante, sobretudo considerando que nunca chegamos a superar as nossas carências sociais em matéria de alimentação.


[1] Para cuja apuração todas as despesas necessárias já foram abatidas, inclusive aquelas realizadas com a alimentação dos trabalhadores. O PAT é, então, um benefício fiscal que se soma à dedutibilidade ordinária das despesas a que diz respeito.

[2] Para todos os cálculos considera-se o salário mínimo de R$ 1.212.

[3] O adicional, como se sabe, corresponde a 10% do lucro excedente de R$ 240 mil por ano (Lei 9.249/95, artigo 3º, parágrafo 1º).

[4]Sistema Constitucional Tributário. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 429-431 (grifos nossos).

[5] “Art. 3º A alíquota do imposto de renda das pessoas jurídicas é de quinze por cento.
§ 1º. A parcela do lucro real, presumido ou arbitrado, que exceder o valor resultante da multiplicação de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) pelo número de meses do respectivo período de apuração, sujeita-se à incidência de adicional de imposto de renda à alíquota de dez por cento.
(…)
§ 4º. O valor do adicional será recolhido integralmente, não sendo permitidas quaisquer deduções.”

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