Executivo pode denunciar unilateralmente tratados internacionais

A questão interessa aos tratados em geral e, portanto, também àqueles em matéria tributária: convenções contra a dupla tributação internacional e tantos outros que versam de forma principal ou acessória sobre o tema. Encontra-se atualmente sob o crivo do STF na ADI 1.625/DF, ajuizada contra o Decreto 2.100/96, por meio do qual o presidente da República denunciou a Convenção 158 da OIT — que fora referendada pelo Decreto Legislativo 68/92 e promulgada pelo Decreto 1.855/96 —, tendo sido até agora proferidos os seguintes votos:

– dos ministros Maurício Corrêa e Carlos Britto predicando interpretação conforme à Constituição (mais exatamente, ao seu artigo 49, inciso I) do decreto, para condicionar a eficácia da denúncia ao referendo do Congresso;

– dos ministros Nelson Jobim e Teori Zavascki declarando constitucional o decreto e reconhecendo a eficácia imediata da denúncia;

– do ministro Dias Toffoli alinhando-se teoricamente à primeira posição acima, mas sustentando que passe a se aplicar apenas após a publicação do acórdão da ADI 1.625, razão pela qual vota pela sua improcedência; e

– dos ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, declarando inconstitucional o decreto e ineficaz a denúncia por meio dele implementada.

Têm-se, portanto, seis votos pela necessidade de autorização legislativa e dois votos pela desnecessidade, pendendo as manifestações dos ministros Gilmar Mendes, Nunes Marques e André Mendonça. De nossa parte, pensamos que deve prevalecer a posição dos ministros Jobim e Zavascki.

É fato que a tese até agora prevalece encontra eco na doutrina de Pontes de Miranda [1], para quem permitir que o Executivo denuncie tratado “sem consulta, nem aprovação, é subversivo dos princípios constitucionais” e de Alberto Xavier [2], que chega a afirmar que, nos tratados tributários, o controle parlamentar é mais importante na denúncia do que na celebração, por equivaler a primeira, indiretamente, a um aumento do tributo que a convenção limitava.

Apesar disso, acreditamos que a razão está com Celso Duvivier de Albuquerque Mello [3], quando afirma que “a denúncia de um tratado não necessita no Brasil de aprovação do Legislativo” e com Francisco Rezek [4], que também a admite e testemunha ser essa a prática adotada pelo Executivo brasileiro, “com franco desembaraço, desde 1926”.

Com efeito, a Carta de 1988, em sua letra e em seu espírito, parece dispensar o concurso do legislador na denúncia de tratados. Quanto à primeira, porque só submete a referendo do Congresso Nacional a atuação do Presidente ao celebrar tratados, convenções e atos internacionais” (artigo 84, inciso VIII). Estamos em que a matéria, por ser vinculada à separação dos Poderes e comportar restrições mesmo ao exercício do poder constituinte derivado (CF, artigo 60, parágrafo 4°, inciso III), não admite interpretação analógica.

Quanto ao espírito, porque atribui competência exclusiva do legislador para “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (artigo 49, inciso I). Ora, na imensa maioria dos casos, a denúncia de uma convenção não acarreta despesa alguma, e antes dispensa o Estado daquelas a que se tinha comprometido. No máximo, priva-o dos benefícios econômicos que o ajuste pudesse lhe proporcionar, mas nem assim se pode dizer que lhe imponha encargos ou compromissos gravosos. Não há espaço aqui para o controle parlamentar, concebido para evitar gastos não autorizados pelo povo (por meio de seus representantes).

Nada há na Constituição, portanto, que se possa comparar à expressa previsão de referendo legislativo para a denúncia de tratados constante da Constituição da França de 1946 (e não repetida na de 1958) e, quanto aos tratados que exigem aprovação parlamentar, na Constituição do Peru de 1993 [5].

Firmada a competência do Executivo, cumpre questionar se também o Legislativo tem poder para denunciar tratado internacional (hipótese em que seria acertado falar-se em revogação deste por lei interna). Segundo Rezek [6], sendo constituído pela comunhão de vontades dos dois poderes, o tratado não pode subsistir quando falte qualquer delas. Defende que a lei ordinária é o meio pelo qual o Congresso Nacional manifesta a retirada de seu apoio ao compromisso e invoca a lei brasileira de extradição de 1911, que determinou a denúncia de todos os tratados relativos à matéria [7].

Não equipara, contudo, tal lei à própria denúncia, registrando que “não deixará de recair sobre o Executivo a responsabilidade por sua formulação no plano internacional” [8], até por ser “uma mensagem de governo” destinada ao governo do outro Estado-parte ou ao depositário, nos pactos multilaterais [9].

Ademais, se “é evidente” que, após a ratificação do tratado, não pode mais o Legislativo revogar o decreto legislativo que o referendou – embora possa fazê-lo antes da ratificação, como ocorreu com o Decreto Legislativo 13/59, que aprovou “o Acordo de Resgate, assinado no Rio de Janeiro, a 4 de Maio de 1956, entre os Governos dos Estados Unidos do Brasil e a França, para a execução administrativa de questões financeiras e a liquidação, por meio de arbitramento, das indenizações devidas pelo Brasil em decorrência da encampação das Estradas de Ferro São Paulo-Rio Grande e Vitória-a-Minas, bem como a Companhia Port of Para”, que foi revogado pelo Decreto Legislativo 20/66 — [10], parece lógico que tampouco possa denunciá-lo diretamente por meio de lei.

Nos Estados Unidos, como lembra Celso Duvivier de Albuquerque Mello, “as resoluções do Congresso solicitando o fim dos tratados têm sido consideradas como não sendo obrigatórias” [11]. Entre nós, a relutância do Presidente da República poderia ser qualificada como crime de responsabilidade, a teor do artigo 8°, item 8, da Lei 1.079/50 [12], o que não invalida a conclusão de que o tratado permanece em vigor até que seja denunciado por decreto presidencial. A propósito, José Carlos Faleiro lembra que os tratados de extradição a que se referia o diploma de 1911 continuaram em vigor até a sua denúncia pelo Presidente da República [13].

É verdade, como lembra Rezek[14], que o mandado legal de denúncia tem muito mais a função de “prevenir traumatismos”, visto que, mesmo sem ela, pode o Legislativo disciplinar diferentemente a matéria objeto do tratado, hipótese em que o Judiciário tenderá a afastar a aplicação do ajuste em prol da lei nova.

Nem por isso a precisão técnica deixa de ter interesse, devendo-se assentar as conclusões de que só o Executivo denuncia tratados no Brasil e de que o faz de modo isolado, sem o concurso do legislador.

*Este artigo, versando questão clássica de Direito Internacional Público, vem em homenagem ao professor Leonardo Nemer Caldeira Brant, há pouco eleito para o cargo de juiz da Corte Internacional de Justiça da ONU, com sede em Haia.

[1] Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n° 1 de 1969. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, tomo III, p. 109.

[2] Inexistência Jurídica e Inconstitucionalidade da Denúncia do Tratado contra a Dupla Tributação entre o Brasil e Portugal. In: Revista Dialética de Direito Tributário n° 48. São Paulo: Dialética, set./1999, p. 11-12.

[3] Direito Internacional Público. 10 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, vol. 1, p. 219.

[4] Direito Internacional Público — Curso Elementar. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 105-109.

[5] “Artículo 57. (…) La denuncia de los tratados es potestad del Presidente de la República, con cargo de dar cuenta al Congreso. En el caso de los tratados sujetos a aprobación del Congreso, la denuncia requiere aprobación previa de éste”.

[6] Op. cit., p. 108-109.

[7] Lei 2.416, de 28.06.1911: “Artigo 12. Publicada esta lei, será o seu texto enviado a todas as nações com as quaes o Brazil mantém relações e serão denunciados todos os tratados de extradição ainda vigentes”.

[8] Op. cit., p. 109.

[9] Op. cit., p. 104-105.

[10] Francisco Rezek, op. cit., p. 66.

[11] Op. cit., vol. 1, p. 244.

[12] “Artigo 8º São crimes contra a segurança interna do País:

(…)

8 – deixar de tomar, nos prazos fixados, as providências determinadas por lei ou tratado federal e necessárias à sua execução e cumprimento”.

[13] A Supremacia dos Acordos Internacionais sobre a Legislação Interna. In: Comentários ao Código Tributário Nacional, vol 3. Coord. Hamilton Dias de Souza, Henry Tilbery, Ives Gandra a Silva Martins. São Paulo: José Bushatsky, 1977, p. 83.

[14] Direito dos Tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 503.

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