ENTES SEM FINS LUCRATIVOS NÃO AUFEREM LUCRO TRIBUTÁVEL

O título, de notável singeleza, reflete o tema debatido no Recurso Extraordinário 612.686/SC, cuja repercussão geral o Supremo Tribunal Federal acaba de reconhecer, sob a condução do Ministro Luiz Fux.

Trata-se de saber se, até 1º de janeiro de 2002 (Lei 10.426/2002, artigo 5º) e até 1º de janeiro de 2005 (Lei nº 11.053/2004, artigo 5º), respectivamente, quando tais tributos foram eliminados, os fundos de pensão fechados se sujeitavam ao pagamento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e do Imposto de Renda (inclusive retido na fonte).

A União defende que sim, fundando-se de saída nas decisões do Supremo Tribunal Federal que negaram a tais entidades, exceto quando inteiramente custeadas pelo empregador, o benefício do artigo 150, inciso VI, alínea “c”[1] – e, a fortiori, o do artigo 195, parágrafo 7º[2] –, da Constituição[3].

O fundamento é inquestionável, mas insuficiente para conduzir à conclusão pretendida, como comprova breve excurso à teoria da incidência e da não-incidência tributária.

Tem-se incidência quando ocorre, no plano dos fatos, a situação abstratamente prevista na norma instituidora válida, como tal entendida aquela editada em sintonia com a norma de competência e com todos os princípios constitucionais tributários.

Já a não-incidência pode ser natural, que ocorre quando o fato se situa para além da norma de competência, (a) seja em razão de vedação fraca: estraneidade daquele à regra constitucional que enuncia de forma ampla e provisória o campo de aplicação do tributo, e que corresponde ao minuendo da subtração que resultará na norma de competência (não-incidência de IPTU sobre imóveis rurais), (b) seja em razão de vedação forte: subsunção do fato à contra-ordem constitucional que amputa parcialmente a regra antes referida, e que corresponde ao subtraendo da operação tendente à elucidação da norma de competência (não-incidência do IPTU sobre um templo religioso). A situação prevista na letra b equivale às imunidades[4], e a competência corresponde, não à regra prevista em a, mas à norma resultante da diferença a – b.

A não-incidência pode ser ainda juridicamente determinada, que ocorre quando o legislador isenta certo fato, que doutro modo seria tributável, da exação por ele mesmo instituída[5] [6].

Assim, a mera conclusão de que o caso não é de imunidade – ou de isenção, pois o raciocínio é idêntico – não autoriza a conclusão automática pela incidência do tributo, a qual pressupõe a afirmação, logicamente anterior, de que o fato se encaixa na regra mencionada na letra a supra.

À falta de tal subsunção, a intributabilidade já estará configurada, e nada – seja a existência de uma lei instituidora expressa (que será inválida), seja a inexistência de uma isenção ou imunidade (que seriam expletivas) – terá o poder de revertê-la.

A pergunta, então, passa a ser: os fundos de pensão fechados auferem lucros para efeito dos artigos 153, inciso III[7] (a base de cálculo do IRPJ é sempre o lucro, seja real, presumido ou arbitrado), e 195, inciso I, alínea “c”[8], da Constituição, mesmo sendo legalmente proibidos de ter fins lucrativos[9] e de distribuir os seus superávits, que só podem ser empregados na melhoria dos planos de benefícios ou na redução das contribuições da patrocinadora e dos beneficiários[10]?

A resposta dada pelos Tribunais Regionais Federais – tributabilidade dos superávits, pois a vedação atingiria apenas a distribuição, mas não a obtenção dos lucros – não faz justiça ao conceito constitucional de lucro[11], que a doutrina empresarial nacional e estrangeira define de forma unânime como a remuneração do capital investido na empresa, passível de distribuição aos sócios, segundo a deliberação soberana destes, reunidos em assembleia geral. É ver, por todos, J. E. Tavares Borba[12], Ripert e Roblot[13], Gilberto de Ulhoa Canto[14], Humberto Ávila[15] e Tipke e Lang[16].

Ainda que admita alguma margem de discrição do legislador na conceituação de renda tributável, o Supremo Tribunal Federal não transige com o princípio da disponibilidade, como se verifica do RE 172.058/SC[17], em que se declarou a inconstitucionalidade do chamado Imposto sobre o Lucro Líquido, exigido da empresa em relação a dividendos (que então eram sujeitos ao IR) ainda não distribuídos aos sócios. O precedente ilumina o caso aqui discutido, embora o foco não esteja, como ali, no beneficiário dos lucros (repartíveis, mas ainda não repartidos), mas na entidade que obtém o superávit (completamente impassível de distribuição).

Impõe-se, portanto, a conclusão jurídica de que os acréscimos patrimoniais obtidos pelos fundos de pensão fechados não são lucros, nem são renda ou proventos de qualquer natureza, que o Código Tributário Nacional também exige que sejam disponíveis[18].

Não se sujeitam, assim, ao Imposto de Renda ou à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, ainda que por retenção na fonte, já que esta nada mais é do que a antecipação daquilo que se presume será devido no fim do ano-base, e aqui se sabe de antemão que nenhum débito existirá.

O raciocínio, a propósito, estende-se a todas as entidades sem fins lucrativos, tais as cooperativas, no que toca ao resultado dos atos cooperativos[19], as OCSIPs[20] e os partidos políticos e sindicatos (que são imunes ao imposto de renda, mas não à CSLL), o que reforça a importância social do tema e amplia o interesse no julgamento que em breve será proferido.

[1] “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(…)

VI – instituir impostos sobre:

(…)

  1. c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.”

[2] “Art. 195, § 7º. São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.”

Se não são assistenciais, como decidiu o STF, é evidente que os fundos de pensão fechados não são entidades beneficentes de assistência social.

[3] STF, Pleno, RE 202.700/DF, Relator Ministro MAURÍCIO CORRÊA, DJ 01.03.2002. STF, Pleno, RE 259.756/RJ, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, DJ 29.08.2003.

[4] É também hipótese de não-incidência natural a omissão do legislador em explorar inteiramente a competência que lhe é deferida pela Constituição (intributabilidade do imóvel residencial, caso o legislador resolva instituir o IPTU apenas sobre os comerciais).

[5] O tributo pode ser também de alheia competência, nos casos onde admitida a isenção heterônoma.

[6] Ao qualificarmos a imunidade como causa de não-incidência natural – e não juridicamente determinada –, não estamos a negar juridicidade à Constituição, mas apenas a reconhecer que a imunidade é intangível pelos poderes constituídos (salvo emendas constitucionais, cabíveis quando o benefício não seja emanação direta de uma cláusula pétrea).

[7] “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

(…)

III – renda e proventos de qualquer natureza.”

[8] “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

(…)

  1. c) o lucro.”

[9] Lei Complementar 109/2001: “Art. 31, § 1º. As entidades fechadas organizar-se-ão sob a forma de fundação ou sociedade civil, sem fins lucrativos.”

[10] Lei Complementar nº 109/2001, artigo 20.

[11] Sobre a normatividade dos conceitos empregados nas normas constitucionais atributivas de competência tributária, ver a nossa última coluna neste espaço (clique aqui para ler).

https://www.conjur.com.br/2014-jan-15/consultor-tributario-seguranca-juridica-exige-estabilidade-conceitos

[12] Direito Societário, 11 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 453-454.

[13] Traité de Droit Commercial, 18 ed. Paris: LGDJ, 2002, tomo 1, volume 2, p. 386.

[14] O Fato Gerador do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza. São Paulo: Resenha Tributária, 1986, p. 5.

[15] Sistema Constitucional Tributário. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 373.

[16] KLAUS TIPKE; JOACHIM LANG. Direito Tributário. Trad. Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 230.

[17] Pleno, Relator Ministro MARCO AURÉLIO, DJ 13.10.95.

[18] “Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.”

[19] Lei nº 5.764/71: “Art. 3º. Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.”

[20] Lei nº 9.790/99: “Art. 1º. Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei.”

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