DILMA VETOU (EM PARTE). QUAIS OS PRÓXIMOS CAPÍTULOS? ASPECTOS JURÍDICOS DOS ROYALTIES DO PETRÓLEO

Pertencem à União, e não ao dono do terreno em que ocorrem, os recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica. A sua exploração é objeto de concessão federal, e o produto da lavra pertence ao concessionário, garantida uma participação ao proprietário do solo (CF, art. 176).

Garante-se ainda aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e a órgãos da administração direta da União uma participação nos resultados dessa exploração no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva” (CF, art. 20, § 1º)[1].

São os famosos royalties, não só petróleo (Lei nº 9.478/97, arts. 45 e ss.), mas também dos minerais sólidos (Lei nº 8.001/90, art. 2º) e do potencial hidrelétrico (Lei nº 9.648/98, art. 17 c/c Lei nº 8.001/90, art. 1º)[2].

Embora não se trate de tributo, mas de receita pública patrimonial (oriunda da exploração de bem público; RE nº 228.800/DF, já referido), pensamos que a proximidade dos institutos e a atualidade do tema justificam o seu exame neste espaço.

Até a edição da Lei nº 12.734, de 30.11.2012, e da MP nº 592, de 03.12.2012, os royalties do petróleo extraído na plataforma continental eram de 10% do valor da produção[3], e os critérios de divisão eram amplamente favoráveis aos Estados e Municípios ditos produtores[4].

Com os novos diplomas, na forma como emanados do Executivo (e ainda pendentes de decisão do Legislativo: análise dos vetos opostos ao projeto de lei e deliberação sobre a conversão da medida provisória), os citados royalties sofreram as modificações a seguir:

  1. a) majoração da alíquota para 15% quanto ao petróleo explorado em regime de partilha de produção – no qual o particular desenvolve todas as atividades por sua conta e risco e, em caso de êxito, adquire o direito a apropriar-se “do custo em óleo, do volume da produção correspondente aos royalties devidos, bem como de parcela do excedente em óleo, na proporção, condições e prazos estabelecidos em contrato” (Lei nº 12.351/2010, arts. 2º, I, e 3º) –, com a fixação de regras de divisão menos benéficas aos Estados e Municípios ditos produtores[5];
  2. b) revisão dos índices de repartição dos royalties do petróleo extraído em regime de concessão, cuja alíquota permaneceu em 10%[6]. Para os campos com contratos de concessão assinados até 03.12.2012, justamente em razão do veto presidencial, foram mantidas as regras anteriores (expostas na nota 4 acima)[7].

Toda a polêmica reside em saber se a redução da participação dos Estados e Municípios ditos produtores – seja quanto aos poços já em exploração, seja em relação aos novos – viola algum direito constitucional seu.

Comecemos pela interpretação do art. 20, § 1º, da Constituição. Há quem defenda que o termo “respectivo” ali empregado – ver transcrição supra – ligaria todas as expressões que o antecedem (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) a todas as que o sucedem (território, mar territorial, zona econômica exclusiva e plataforma continental). Ter-se-iam, portanto, território da União, território do Estado e território do Município, o que é normal, mas também “plataforma continental da União”, “plataforma continental do Estado” e “plataforma continental do Município”, v.g.

A ser assim (o que, gramaticalmente, exigiria que o termo viesse no plural), os Estados e Municípios confrontantes teriam o direito incontrastável de não dividir com entidades homólogas, mas apenas com a União, os royalties do petróleo extraído em “sua” plataforma continental[8] – raciocínio que imporia a conclusão, que não temos visto sustentada, da inconstitucionalidade, não só das alterações legislativas, mas do próprio sistema anterior, na parte em que distribui 8,75% dos royalties para todos os Estados e Municípios brasileiros.

Detalhes à parte, importa aferir se a premissa procede: Estados e Municípios têm ou não poderes sobre o mar? Revejamos os conceitos básicos:

mar territorial: faixa de 12 milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular, na qual o Brasil exerce soberania quase absoluta, limitada apenas pelo direito de passagem inocente de navios estrangeiros (Lei nº 8.617/93, art. 1º);

zona econômica exclusiva: faixa que se estende das 12 às 200 milhas marítimas, onde o Brasil exerce soberania limitada para fins de – no que interessa ao nosso tema – exploração e aproveitamento de recursos naturais vivos ou não-vivos, das águas sobrejacentes ao leito de mar, do próprio leito de mar e do seu subsolo (idem, arts. 6º e 7º);

– plataforma continental: leito e subsolo das áreas submarinas que vão do limite exterior do mar territorial (12 milhas) até o ponto mais distante entre (i) o fim da zona econômica exclusiva (coincidência) ou (ii) o bordo exterior da margem continental (início das inclinações abruptas que levam ao fundo do mar), com o limite de 350 milhas marítimas. Nesta área – ou melhor, na porção da plataforma continental que extrapole a zona econômica exclusiva (caso ii) –, o Brasil tem soberania limitada, no que ora nos interessa, à exploração dos recursos minerais e outros recursos naturais não-vivos do leito do mar e do subsolo, bem como dos organismos vivos que se mantêm em contato físico constante com um ou outro (idem, arts. 11 e 12)[9].

Na ADI-MC nº 2.080/RJ (STF, Pleno, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, DJ 22.03.2002), que discute a incidência de ICMS sobre o transporte aéreo entre o continente e o mar territorial ou a plataforma continental, ou entre dois pontos no mar territorial (plataformas da Petrobras), anotou o Min. CARLOS VELLOSO que “o art. 20, § 1º, da Constituição é indicativo no sentido de que a plataforma continental constitui território do Estado ou do Município”, tendo o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE acrescentado que, “na federação, não há área ou suas projeções que não estejam no território de um Estado ou do Distrito Federal e, simultaneamente, de um Município”.

As duas assertivas parecem-nos desacertadas, data venia. É fato, como alerta o Min. PERTENCE, que não se pode confundir domínio público de um bem com território de um ente político. Assim, por exemplo, os lagos (CF, art. 20, III), os terrenos de marinha (inciso VII) e os sítios arqueológicos ou pré-históricos (inciso X) são bens da União, e nem por isso deixam de integrar o território dos Estados e Municípios em que se situam.

Nesses casos, entretanto, e em todos os demais – salvo um – do art. 20 da Carta que aludem a imóveis ou a acidentes geográficos, tem-se o bem federal ocupando apenas uma parcela do território dos outros entes, como aliás também o fazem os imóveis particulares.

A exceção é justamente o mar territorial (inciso VI), que, a prevalecer a visão ora criticada, seria incluído no território dos Estados e Municípios apenas para ser imediata e integralmente empolgado pela União, contradição que nos recusamos a atribuir ao constituinte[10].

Seja como for, interessa-nos aqui a plataforma continental, que – ao contrário que que aduz o Min. VELLOSO – não pode pertencer a qualquer Estado ou Município pela razão singela de que sequer integra o território nacional, o que se depreende das severas limitações à soberania que aí é exercida, mencionadas acima e agravadas, v.g., pela liberdade de navegação e sobrevoo em favor de todos os países (Lei nº 8.617/93, art. 11)[11]. Bem por isso a própria Constituição – após ter incluído o mar territorial, como um todo, entre os bens da União – evita fazer o mesmo quanto à plataforma continental e à zona econômica exclusiva, limitando-se a aludir aos “recursos naturais” nelas existentes.

Donde se conclui, incidentalmente, que o transporte do continente para ponto situado na plataforma continental (ou vice-versa) não se sujeita ao ISS, por não ser estritamente municipal (Lei Complementar nº 116/2003, item 16 da lista), e nem ao ICMS, por não ser interestadual ou intermunicipal (CF, art. 155, II), intributabilidade que compartilha com o transporte internacional[12].

E donde se conclui, no que tange ao nosso tema, que a União não só pode como deve distribuir de forma tendencialmente igualitária entre todos os Estados e Municípios brasileiros os royalties do petróleo explorado na plataforma continental, não havendo mácula nos critérios estabelecidos pela nova legislação.

Inconstitucional é, pelo contrário, o privilégio aos entes federados confrontantes fundado unicamente numa artificiosa vinculação territorial – sendo justa a discriminação em virtude das atividades essenciais à exploração realizadas no território de cada um, já que se trata justamente de participação nos respectivos resultados[13].

Conclusão oposta impõe-se quanto aos royalties dos potenciais hídricos e dos minerais (inclusive petróleo) extraídos do solo, em relação aos quais o art. 20, § 1º, da Constituição institui critério de territorialidade, e que por isso devem ser divididos somente entre a União e o(s) Estado(s) e o(s) Município(s) onde localizados tais recursos[14].

Finalmente, cumpre discutir se os critérios de repartição poderiam ter sido alterados também quanto ao petróleo extraído de jazidas concedidas antes da edição dos novos diplomas.

Pensamos que sim. A uma porque, como visto, as regras anteriores se desviavam do mandamento constitucional, privilegiando Estados e Municípios pelo simples fato de serem confrontantes à área marítima de exploração. E a duas porque, ainda que assim não fosse, não há falar em ato jurídico perfeito (os contratos de concessão vinculam a União e o particular, sem a intervenção dos entes federados, e não têm por objeto o destino a ser dado à receita dos royalties) ou em direito adquirido, sendo pacífica na jurisprudência do STF a inexistência de direito adquirido a um dado regime jurídico[15] (no caso, de rateio da arrecadação)[16].

Tudo o que havia era expectativa, e esta não é reconhecida como passível de proteção pela Corte[17], embora seja altamente recomendável a adoção de regimes transitórios voltados a mitigar os efeitos de uma mudança abrupta[18], pois a ninguém interessa a súbita inviabilização de qualquer parte da Federação.

Tal regime de transição, mesmo sem ostentar o nome, pode ter sido instaurado com a manutenção das regras anteriores até a exaustão dos poços já licitados.

Ao cabo, não deixa de ser irônico ver o Poder Público clamando pelo respeito às suas expectativas jurídicas. Que fique de lição!

[1] A figura alternativa da compensação financeira pela exploração, prevista no mesmo comando, não interessa no momento, por não ter sido adotada pelo legislador – que optou por quantificar a obrigação a partir do resultado da atividade, e não dos danos que esta ocasione ou das despesas adicionais que imponha a qualquer ente federado (STF, Pleno, RE nº 228.800/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 16.11.2001). Por isso mesmo, tais argumentos, conquanto muito invocados, ficam a nosso ver liminarmente excluídos do debate.

[2] Em todos os casos, a referência é apenas aos diplomas principais, havendo vários outros que se ocupam das matérias.

[3] Não se consideram no texto: (a) os royalties do petróleo extraído em terra ou em lagos, rios e nas respectivas ilhas, bem como (b) a possibilidade excepcional de redução dos royalties a 5% (Lei nº 9.478/97, art. 48,), hipóteses nas quais os critérios de repartição serão diversos.

[4] Royalties do petróleo explorado na plataforma continental em regime de concessão – contratos anteriores a 03.12.2012 (Lei nº 9.478/97, arts. 48 e 49, II; Lei nº 7.990/89, art. 7º; Lei nº 7.525/86, todos os artigos):

– União: 30%

– Estados onde situadas instalações terrestres ou marítimas de embarque ou desembarque: 15%

– Estados confrontantes, assim entendidos aqueles ao largo de cujo litoral se dá a exploração: 11,25%

– Municípios confrontantes: 26,25% (11,25% exclusivamente para estes, e 15% repartidos entre eles e as respectiva áreas geoeconômicas)

– Municípios onde situadas instalações terrestres ou marítimas de embarque ou desembarque: 5%

– Municípios afetados pela exploração, definidos pela ANP: 3,75%

– fundo a ser distribuído a todos os Estados e Municípios brasileiros, segundo os critérios dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios: 8,75% (1,75% para os Estados e 7% para os Municípios)

[5] Royalties do petróleo explorado na plataforma continental em regime de partilha de produção (Lei nº 12.351/2010, arts. 42, § 1º, e 42-B, II, na redação da Lei nº 12.374.2012):

– União: 22%

– Estados confrontantes: 22%

– Municípios confrontantes: 5%

– Municípios afetados por operações de embarque e desembarque, a serem definidos pela ANP: 2%

– fundo a ser distribuído a todos os Estados do Brasil, segundo os critérios do FPE: 24,5%

– fundo a ser distribuído a todos os Municípios do Brasil, segundo os critérios do FPM: 24.5%

[6] Royalties do petróleo explorado na plataforma continental – concessões contratadas a partir de 03.12.2012 (Lei nº 9.478/97, art. 48-A, II, na redação da MP nº 592/2012):

– União: 20% (sem variação no tempo)

– Estados confrontantes: 20% (sem variação no tempo)

– Municípios confrontantes: 15% em 2013 (redução gradual até 4% em 2019)

– Municípios afetados por operação de embarque e desembarque, a serem definidos pela ANP: 3% em 2013 (e 2% a partir de 2017)

– fundo a ser distribuído a todos os Estados do Brasil, segundo os critérios do FPE: 21% em 2013 (aumento gradual até 27% em 2019)

– fundo a ser distribuído a todos os Municípios do Brasil, segundo os critérios do FPM: 21% em 2013 (aumento gradual até 27% em 2019)

[7] Os concessionários das jazidas mais rentáveis (a exação não se aplica aos contratos de partilha de produção) devem pagar, além dos royalties, uma participação especial calculada na forma do Decreto n 2.705/98 (arts. 21 a 23). Os critérios de divisão dessa receita também foram alterados, como se vê a seguir:

Participação especial do petróleo explorado na plataforma continental – concessões anteriores a 03.12.2012 (Lei nº 9.478/97, art. 50, § 2º):

– União: 50%

– Estados confrontante: 40%

– Municípios confrontantes: 10%

Participação especial do petróleo explorado na plataforma continental – concessões posteriores a 03.12.2012 (Lei nº 9.478/97, art. 50, § 5º, na redação da MP nº 592/2012):

– União: 43% em 2013 (aumento gradual até 46% a partir de 2016)

– Estados confrontantes: 32% em 2013 (redução gradual até 20% em 2018)

– Municípios confrontantes: 5% em 2013 (e 4% a partir de 2019)

– fundo a ser distribuído a todos os Estados do Brasil, segundo os critérios do FPE: 10% em 2013 (aumento gradual até 15% em 2019)

– fundo a ser distribuído a todos os Municípios do Brasil, segundo os critérios do FPM: 10% em 2013 (aumento gradual até 15% em 2019)

[8] É o que predica, entre outros, CID HERÁCLITO DE QUEIROZ. Inconstitucionalidade e burocracia nos royalties. O Estado de São Paulo, 30.11.2012.

[9] Para uma visão completa do assunto, ver J. F. REZEK. Direito Internacional Público. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 294-312.

[10] Idêntica posição quanto ao mar territorial é expressa por MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 154.

[11] A estraneidade da plataforma continental ao território nacional – com a discordância de CELSO D. ALBUQUERQUE MELLO (Curso de Direito Internacional Público. 10 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, vol. 2, p. 951) – é afirmada também por ALBERTO XAVIER (Direito Tributário Internacional do Brasil. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 127-129), MARCO AURÉLIO GRECO (Impossibilidade de cobrar ICMS em operações ocorridas no mar territorial e na zona econômica exclusiva. In Revista Dialética de Direito Tributário vol. 133. São Paulo: Dialética, outubro de 2006, p. 67-79) e RUTSEL MARTHA (The Jurisdiction to Tax in International Law – Theory and Practice of Legislative Fiscal Jurisdiction. Boston/Deventer: Kluwer, 1989, p. 110-137), para quem aquela soberania limitada, não sendo pessoal e nem territorial, é qualificada de “funcional”.

[12] Sobre o transporte internacional, ver a ADI nº 1.600/UF (STF, Pleno, Rel. para o acórdão Min. NELSON JOBIM, DJ 20.06.2003).

[13] Uma vez legalmente atribuídos aos Estados e Municípios, os royalties constituem receita própria destes, sendo passíveis de fiscalização pelos respectivos Tribunais de Contas. Isso é tudo o que diz o acórdão proferido no MS nº 24.312/DF (STF, Pleno, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ 19.12.2003), que a nosso ver em nada contribui para a discussão em curso.

[14] Veja-se, no particular, a acertada regra do art. 49, I, da Lei nº 9.478/97, atinente à repartição dos royalties do petróleo extraído em terra ou em lagos, rios e nas respectivas ilhas. A questão, em síntese, não é o tipo de mineral, mas o local onde extraído.

[15] STF, Pleno, MS nº 22.094/DF, Rel. Min ELLEN GRACIE, DJ 25.02.2005.

[16] A alegada troca, nos bastidores da constituinte, (a) da receita de ICMS perdida por força da imunidade do art. 155, § 2º, X, b, da Constituição (b) pela reserva dos royalties aos Estados ditos produtores, além de não justificar a extensão da vantagem aos Municípios confrontantes, acabou não refletida no art. 20, § 1º, tal como o interpretamos, não indo além da mera crônica política.

[17] STF, Pleno, RMS nº 28.594/DF, Rel. para o acórdão Min. MARCO AURÉLIO, DJe 19.10.2012.

[18] Sobre o tema, ver PATRÍCIA BAPTISTA. A tutela da confiança legítima como limite ao exercício do poder normativo da administração pública: a proteção das expectativas legítimas dos cidadãos como limite à retroatividade normativa. In Revista de Direito da Procuradoria-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, vol. 11, jan. Dez. 2007, p. 15 e ss.

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