Criminalização da atividade econômica e modulação

O Supremo Tribunal Federal iniciou na semana passada o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 163.334, onde se discute se é crime o não pagamento de ICMS próprio devidamente declarado.

Os ministros Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia deram pela criminalização. Os Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, pelo caráter meramente tributário da infração. E hoje devem ser colhidos os últimos votos, dos Ministros Dias Toffoli e Celso de Mello.

Até o fim do julgamento, não cabe aos advogados que nele atuam discutir publicamente as razões adotadas por cada ministro. Aqui se trata de coisa diversa. Primeiro, de esclarecer erro histórico quanto à origem do artigo 2º, II, da Lei 8.137/90 (apropriação indébita tributária). Ao contrário do que se afirmou da tribuna e da bancada, o texto que definia como crime “deixar de recolher (…) tributo (…) recebido de terceiros através de acréscimo ou inclusão no preço” (artigo 2º, V, na numeração original), rejeitado pelo Legislativo, não foi proposto pelo Deputado Nelson Jobim. Tratava-se, isso sim, do projeto do Executivo, que o jurista, em seu parecer como relator da matéria na Câmara dos Deputados, tachou de pobre em “clareza na construção dos tipos penais”, os quais “surgem imperfeitos ou por demais abertos”, dando como exemplo precisamente o artigo 2º, V.

O substitutivo Nelson Jobim, atento ao princípio de que “o bem jurídico penal precisa despontar restrito”, “descreve[u] melhor os tipos delitivos, procurando organizar os comportamentos ofensivos por meio de categorias juridicamente bem conhecidas”. Foi nesse sentido a alteração que empreendeu na redação do artigo 2º, V, do texto original, aberto e construído com base nas noções econômicas de “acréscimo ou inclusão no preço” (sem dúvida alcançando o ICMS próprio), para fazer prevalecer as “categorias juridicamente bem conhecidas” de desconto ou cobrança de tributo de particular contra particular (artigo 2º, II, da Lei 8.137/90), que só ocorrem no campo da substituição tributária.

O segundo aspecto a analisar-se aqui são as consequências jurídicas do entendimento até agora prevalecente na votação. Caso ele prospere, todo gestor de empresa com dívida de ICMS enfrentará processo criminal, pois é no âmbito deste que se avalia a existência de dolo. Pode até ser absolvido, se conseguir demonstrar a falta de intencionalidade, segundo critérios que estão por ser definidos. Mas se tornará réu e responderá a ação penal por longos anos, correndo mesmo o risco de prisão em segunda instância, a depender da evolução desse tema no Congresso Nacional. O efeito disso sobre o congestionamento do Judiciário e sobre a atração de investimentos precisará ser mensurado por especialistas.

Na esfera tributária, a noção de que o ICMS é devido pelo comprador, e recebido em simples depósito pelo vendedor, condicionará o pagamento do imposto ao efetivo recebimento do preço, autorizará o adquirente a contestar ou a pedir restituição do ICMS que entende indevido e afastará o imposto nas compras feitas por entidades imunes. Mas há também o lado negativo: o administrador responderá com os seus bens pessoais em caso de atraso ou não pagamento, e o consumidor será responsável pelo ICMS não destacado na nota fiscal pelo lojista.

O terceiro ponto concerne à modulação dos efeitos temporais do acórdão, caso a visão até agora majoritária venha mesmo a se impor. Em 1971, o STF afastou a aplicação de lei expressa que equiparava a apropriação indébita, para efeitos penais, o não pagamento de IPI (Recurso Extraordinário em Habeas Corpus 67.688). A posição nunca foi alterada, e a premissa em que assenta — tributos indiretos como dívida própria do contribuinte — foi confirmada em todas as decisões referidas nos dois parágrafos anteriores. Uma reviravolta nessa matéria exigiria aplicação apenas para os fatos geradores ocorridos após o fim do julgamento.

Um fato recente reforça essa conclusão: o fundamento central de diversos votos consiste na decisão do STF que excluiu o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, ao suposto de que aquele não constituiria receita do comerciante, mas valor desde sempre pertencente ao Estado e que apenas transita na contabilidade do empresário (Recurso Extraordinário 574.706). Ocorre que o referido acórdão é objeto de radical pedido de modulação por parte da Fazenda Nacional: pede-se que o entendimento só valha a partir do futuro julgamento dos embargos de declaração ali opostos. Parece natural que, no mínimo, as duas modulações caminhem juntas, de forma a evitar que o mesmo ICMS, em relação a um mesmo período, seja receita da empresa para fins tributários (impossibilidade de sua exclusão da base do PIS/Cofins quanto ao passado), mas seja receita do Estado para efeitos criminais (caracterização da apropriação indébita).

O quarto ponto concerne aos chamados devedores contumazes, conceito não definido em lei nenhuma. O argumento a seu respeito é o de que, cientes de que jamais pagarão o ICMS, não o embutem no preço — embora procedam a um destaque meramente formal, calculado sobre o preço líquido. Com isso, logram vender mais barato, fraudando a livre concorrência. Ora, se a premissa é de que não houve repasse econômico do imposto, ter-se-ia apropriação de quê? Lado outro, admitindo-se para argumentar que o repasse tenha sido feito, arranhão à concorrência é que não haverá, pois os preços serão os de mercado.

Em qualquer dos casos, fica afastada a incidência do art. 2, II, da Lei 8.137/90 também para os contribuintes que alguém queira, sem parâmetro legal nenhum, enquadrar nesse conceito fugidio.

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