Rerct: armadilha estatal?

O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct) foi instituído na Lei Federal nº 13.254/16, “para declaração voluntária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados com omissão ou incorreção em relação a dados essenciais, remetidos ou mantidos no exterior, ou repatriados por residentes ou domiciliados no País” (artigo 1º).

Por meio do regime mencionado, o Estado brasileiro arrecadou R$ 50,9 bilhões [1], e contribuintes que mantinham ativos no exterior, lícitos, porém, não declarados — e que, em razão disso, estavam sujeitos à responsabilização jurídica, inclusive criminal — puderam regularizar seu patrimônio, declarando-o aos órgãos competentes.

Quem o fizesse, de acordo com o artigo 5º da Lei Federal nº 13.254/16, teria extinta a sua punibilidade pelos crimes relacionados às omissões nas declarações pretéritas, e ficaria sujeito ao pagamento de imposto de 15% do valor do patrimônio declarado, à luz do artigo 6º do diploma legal.

À época em que a lei entrou em vigência, a preocupação central dos contribuintes estava relacionada a exigências que a Receita Federal poderia fazer para obter a demonstração da licitude dos ativos, bens ou direitos regularizados. Isso porque, em muitos casos, obter documentos comprobatórios dessa origem era tarefa impossível, seja porque há décadas o patrimônio, apesar de lícito, estava no exterior, seja porque as próprias instituições financeiras, para preservar o sigilo de seus clientes, adotavam políticas de armazenamento de dados que impediam a reconstrução histórica dos fatos.

Havia muitas dúvidas sobre a segurança da adesão ao Rerct e surgia, com grande recorrência, a seguinte pergunta: poderão a Receita Federal e o Banco Central exigir, com base nas declarações apresentadas para adesão ao regime, a comprovação da origem dos ativos, bens ou direitos, para que se assegurem os benefícios previstos na lei?

Para esclarecer essa e outras questões essenciais, em abril de 2016, a Receita Federal publicou extenso rol de perguntas e respostas sobre o Rerct, no qual ficava claro que o contribuinte não teria obrigação de comprovar a sua licitude. À pergunta 40 do rol (“O declarante precisa comprovar a origem lícita dos recursos?”), a resposta era categórica: “não há obrigatoriedade de comprovação. O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da RFB”.

O posicionamento da Receita Federal do Brasil sobre a matéria, somado ao que dispõe o artigo 4º, §12 da Lei Federal nº 13.254/2016, gerou em muitos contribuintes a percepção de que não havia riscos em regularizar seu patrimônio lícito mantido no exterior. Esse último dispositivo estabelece que “a declaração de regularização de que trata o caput não poderá ser, por qualquer modo, utilizada: I – como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatórios ou procedimento criminal; II – para fundamentar, direta ou indiretamente, qualquer procedimento administrativo de natureza tributária ou cambial em relação aos recursos dela constantes”.

Em suma, a Receita não poderia exigir do aderente que apresentasse documentos para comprovar a licitude dos ativos, bens e direitos declarados, e as informações apresentadas para a adesão ao Rerct jamais poderiam, isoladamente, viabilizar a instauração de qualquer procedimento – administrativo ou criminal -, que tivesse como fim apurar circunstâncias relacionadas ao que fosse declarado.

Apesar disso, nos últimos anos, contribuintes que aderiram ao Rerct têm sido notificados pela Receita Federal, a qual tem se valido exclusivamente das informações apresentadas para a adesão ao regime, para exigir a apresentação de documentação comprobatória da origem do patrimônio declarado. Em muitos casos, como essa documentação simplesmente não existe, decisões ilegais de exclusão de contribuintes do regime especial têm sido proferidas, algumas delas ancoradas em inaceitáveis presunções, em tudo incompatíveis com a Lei Federal nº 13.254/16 e com a diretriz interpretativa que lhe foi dada pela própria Receita.

Caso concreto
Em caso revelador dessa situação, um contribuinte, que confiou na seriedade do regime e na veracidade das informações publicadas pela Receita Federal, foi excluído do Rerct, após ter sido ilegalmente intimado, com base na seguinte justificativa: “O sujeito passivo epigrafado não apresentou documentação suficiente à comprovação da titularidade e condição jurídica dos recursos, bens ou direitos declarados, tendo, portanto, prestado declaração presumidamente falsa na Dercat apresentada, o que, nos termos do artigo 9º da Lei nº 13.254/2016 e do inciso I do artigo 26 da IN RFB nº 1.627/2016, implicou na sua exclusão do regime”. Tal decisão foi encaminhada ao Ministério Público para apuração das supostas condutas criminosas subjacentes, o que confere contornos ainda mais graves à ilegalidade estatal.

A Receita, portanto, tem instaurado procedimentos administrativos com base apenas nas informações fornecidas pelos contribuintes para adesão ao Rerct, e, mais do que isso, os tem excluído do regime com base em descabida presunção de falsidade, após considerar insuficiente a documentação por eles apresentada. Tal documentação, não custa frisar, sequer poderia ser exigida.

Depois de conquistar a confiança dos contribuintes, assegurando-lhes que não seriam obrigados a apresentar documentação comprobatória da origem do patrimônio regularizado – porque, reitere-se, exigi-lo seria inviabilizar o Rerct — a Receita Federal passa a puni-los, reputando “presumidamente falsas” suas declarações por insuficiência da documentação apresentada.

Falsas, é inegável, foram as expectativas criadas pela Receita, ao, em 2016, emitir diretriz interpretativa sobre as condições do Rerct e, anos depois, ignorá-las frontalmente — e ignorar a própria lei de regência: a violação à segurança jurídica, à legalidade, à boa-fé objetiva e à moralidade que devem nortear o funcionamento da administração pública é evidente, sendo corrente o sentimento, entre os contribuintes intimados, de que foram ludibriados pelo Estado.

A proibição de venire contra factum proprium parece esquecida pela Receita.
Alguns desses casos, inclusive, chegaram ao Poder Judiciário, havendo importantes decisões reconhecendo a ilegalidade da atuação do fisco.

No Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em acórdão da lavra da Desembargadora Federal Maria do Carmo Cardoso, decidiu-se que: “À época da adesão ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct), em 25/6/2016, não era obrigatória a comprovação da origem lícita dos recursos, competindo à Receita Federal do Brasil demonstrar a eventual falsidade das informações” [2]. Logo, “a Receita Federal, ao se valer pura e simplesmente da Dercat (…) para instaurar um procedimento administrativo fiscal” age de forma ilegal, sendo inadmissível que se sujeite o contribuinte, nesse contexto, a qualquer tipo de investigação.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região também tem firmado posicionamento no sentido de que “não se mostra pertinente a exclusão do contribuinte do programa de regularização pelo fato de não ter juntado documentos suficientes para comprovar as informações lançadas na declaração de adesão, se (…) não se imputava ao contribuinte no momento da referida adesão o ônus de realização tal comprovação” [3].

É preciso ressaltar, entretanto, que a simples intimação dos contribuintes pela Receita, com base apenas nas informações apresentadas para adesão ao Rerct, é ilegal, sendo fundamental que a autarquia obedeça a Lei Federal nº 13.254/2016 e atue em conformidade com as diretrizes por ela difundidas; do contrário, o próprio fisco ficará desacreditado, ficará seriamente comprometido o alcance do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária, ampliado pelas disposições da Lei Federal nº 14.973/2024, e de outras políticas públicas análogas que o Estado brasileiro venha a instituir.

[1] Economia – Governo diz ter arrecadado R$ 50,9 bilhões com repatriação (globo.com)
[2] HC nº 1022152-88.2022.4.01.0000.
[3] AI nº 5016079-75.2022.4.03.0000.

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