Gilmar Mendes: 20 anos de um tributarista no Supremo Tribunal Federal

No próximo dia 20, o ministro Gilmar Mendes completa 20 anos de exercício no Supremo Tribunal Federal, marca até hoje atingida por menos de 20 brasileiros.

A efeméride suscita reflexões e exige comemoração. O Brasil não seria o mesmo sem o Supremo, e o Supremo não seria o mesmo sem o ministro Gilmar. 

Em 2018 organizei em Teresina (PI) um congresso tributário em sua homenagem. Na ocasião proferi o discurso que adiante transcrevo. Se alguns trechos hoje soam pressagos — faltavam 20 dias para as eleições presidenciais e vivíamos o apogeu da “lava jato” —, isso só prova que captei, pelo menos em parte, o espírito do homenageado. O profeta era ele, não eu.

Há homens bravos, mas ignaros. Quando bem-sucedidos — e eles existem! —, lideram vigorosamente legiões de fanáticos, sem saber bem para onde. É só por acaso, ou pela sorte dos liderados, que os conduzem a bom porto.
Há homens preparados, mas tépidos. Estes, ou ficam na promessa, ou — quando vingam — movem-se em eterno ziguezague, aderindo aos poderosos de plantão em busca de palmas ou de moedas.
Há por fim homens intrépidos e sábios. A combinação é rara, e não raro eles são mal compreendidos pelos seus contemporâneos. Mas a eles está reservado um lugar de honra no julgamento da História.
O ministro Gilmar Mendes pertence decididamente a essa terceira categoria.
Numa breve referência pessoal, registro que o conheci em 1992, ano em que entrei na Faculdade de Direito da UFMG e em que esta completava 100 anos. Em comemoração organizou-se um magnífico congresso Luso-Brasileiro de Direito Constitucional, ao qual compareceram juristas consagrados como Jorge Miranda, José Manuel Cardoso da Costa, então presidente da Corte Constitucional portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, atual presidente daquele país, José Afonso da Silva, Lourival Vilanova e Raul Machado Horta.
Foi ali que pela primeira vez vi e ouvi o nosso homenageado, que já ostentava o ar grave, o raciocínio agudo, a exposição límpida e a cultura refinada que tanto o particularizam. Isso tudo — fazia as contas há pouco, ao rever o seu currículo — aos 36 anos de idade!
Desde então, a forte admiração que ali mesmo se estabeleceu só fez se confirmar.
(…)
Quem hoje o censura por ser garantista — e isso é uma virtude, não um defeito, pois prisões cautelares e condenações têm pressupostos legais bastante estritos —, talvez desconheça as críticas que lhe eram dirigidas nos tempos de atuação no Executivo, quando era comum tachá-lo de autoritário.
Quem mudou, o ministro ou os seus críticos?
Meus amigos, a verdade é que ninguém mudou. Só o discurso oportunista é que mudou.
No Executivo, Gilmar Mendes ajudou a institucionalizar o Brasil, liderando a elaboração de leis e emendas que instituíram, por exemplo: a ADC, que provou o seu valor, mas no início foi recebida por muitos como um mecanismo de redução da liberdade dos juízes e mesmo ridicularizada ao argumento de que a constitucionalidade já é presumida; a ADPF, que sujeitou ao controle direto do STF as leis municipais, o Direito pré-constitucional e outras porções do sistema jurídico antes livres dessa vigilância; o teto do funcionalismo público.
Foram muitas as razões para muita gente não gostar dele. Mas nem tudo eram espinhos: houve também a criação dos Juizados Especiais Federais e a condução do maior acordo jamais celebrado no Brasil, aquele que pôs fim ao contencioso sobre a correção monetária dos depósitos de FGTS.
N
o Judiciário, o ministro Gilmar se submete às instituições que ajudou a erigir, resistindo à tentação e denunciando a moda de as distorcer em prol de um voluntarismo antidemocrático que se apoia antes em slogans do que em princípios constitucionais.
Há, portanto, perfeita coerência no seu agir.
Os seus detratores se aferraram ao caos por ingenuidade ou excesso de esperteza, e por ingenuidade ou excesso de esperteza continuam a semeá-lo. Resistiram à produção das normas, e agora difundem teorias que emancipam os juízes da sua observância.
Descuram da advertência de Goethe no pequeno poema O Aprendiz de Feiticeiro: “Les forces que j’ai évoquées, je ne peux plus m’en débarasser”.
Ao alimentarem pulsões como o ódio das massas — impondo ao cidadão o ônus de provar a sua inocência — e a arrogância das autoridades, para quem provas ilícitas, quando não a sua simples palavra, bastam para selar a sorte de alguém, os detratores do ministro Gilmar liberam das amarras civilizatórias forças que não mais conseguirão controlar, e que um dia se voltarão contra eles ou contra os seus.
Mas é cada vez mais difícil discutir Direito racionalmente, seja com os iniciados, seja sobretudo com a opinião pública. Em seu discurso de posse na Presidência do STJ, o ministro João Otávio de Noronha criou uma imagem inspirada: antes éramos um país de 200 milhões de técnicos de futebol; hoje somos um país de 200 milhões de ministros do Supremo, onde todos se acham autorizados a dar opiniões definitivas sobre decisões judiciais que não leram, jamais lerão e não têm as ferramentas técnicas para entender — quando não sobre os juízes que as proferiram.
Todos os que alcançam altas posições estão fadados a polêmicas. A diferença do ministro Gilmar é que ele não contemporiza, mas as enfrenta com toda a força de sua mente, e vez por outra parece até que com um certo prazer.
(…)
Em suma, em meio ao tsunami, o ministro Gilmar se mantém impassível, seguro da sua missão, da sua visão quanto ao papel do Direito e do Judiciário — que não é lugar para saraus “lítero-poético-recreativos” —, da sua erudição inusitada num país de palpiteiros, de seu raciocínio rápido, da sua verve irônica e avassaladora.
É um capitão que não abandona o barco jamais.
Ma
s estamos num congresso tributário, e o nosso homenageado tem decisiva contribuição também nessa área. Cito quatro processos de grande relevância, todos relatados por ele.
Na ADO 25, o STF declarou a omissão inconstitucional do Congresso quanto à edição da lei complementar prevista no artigo 91 do ADCT: compensação aos Estados pelas perdas de arrecadação decorrentes da desoneração das exportações. E deu solução dogmática ao angustiante problema da mora legislativa, determinando que — se não editada a lei em até um ano — caberia ao Tribunal de Contas da União calcular os valores a pertencentes a cada Estado, para tanto recorrendo aos critérios do artigo 91 do ADCT e aos acordos que já vinham sendo firmados entre os estados — vejam bem, de critérios já positivados, e não livremente inventados pelo relator.
Na ADI 1648, o STF declarou a não incidência de ICMS sobre a venda de salvados — os despojos que sobram para as seguradoras após um sinistro. A questão era o conceito de mercadoria, sobre o qual seguimos precisando da orientação da Corte, sobretudo nesses novos tempos de economia digital.
No RE 573.540, o STF definiu como tributo — e tributo inválido, pois os Estados só podem criar contribuição para financiar a previdência dos seus servidores – a exigência imposta aos servidores mineiros para custear o atendimento à sua saúde. O tema é atual, pois alguns Estados têm criado Fundos de Estabilização Fiscal compostos da contrapartida que impõem às empresas para a manutenção dos seus incentivos de ICMS; contrapartida a que não dão nome, mas que só pode ser tributo. E tributo inconstitucional, porque não é imposto — ou é imposto inválido, porque vinculado —, nem taxa ou contribuição de melhoria, e porque as demais contribuições são de competência privativa da União.
Por fim, no RE 560.626, que depois redundou na Súmula Vinculante 8, o STF declarou a inconstitucionalidade dos comandos de lei ordinária que fixavam prazos de prescrição e decadência tributárias mais longos do que os definidos no CTN. E quantos são os casos de invasão pela lei ordinária a campos reservados à lei complementar?
(
…)
Ministro Gilmar, V. Exa. não é Goethe, e muito menos eu sou Napoleão — só se fosse um Napoleão de hospício… Mas vou encerrar com a exclamação que este lançou ao avistar o grande escritor em Erfurt, há mais de 200 anos: “Voilà un homme!” Eis um homem!

Admiração decerto não pressupõe coincidência integral de opiniões —nociva em qualquer domínio, pois é no entrechoque que as ideias evoluem, e irrealizável no mundo do Direito, pleno de teorias, de interesses e de vaidades. Importante, mesmo quando discordamos, é podermos confiar que as posições do ministro decorrem de padrões hermenêuticos consagrados cuja aplicação é exposta de forma rigorosamente analítica, em atitude de quem chama para o debate.

Jurista completo, Gilmar Mendes é também exímio tributarista. Aos exemplos já citados acrescento o magnífico voto vencido que proferiu no caso da prisão por dívida de ICMS (RHC 163.334), voto que ainda há de prevalecer.

Ministro Gilmar, o Brasil tem muito a agradecer e muito mais a esperar de V. Exa.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2022-jun-11/igor-mauler-gilmar-mendes-20-anos-tributarista-stf

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